Michel Laub

Mês: maio, 2009

Filmes em cartaz cuja sinopse não dá muita vontade de sair de casa

(Textos do Guia da Folha):

A partida – “Violoncelista desempregado volta para a cidade natal, onde começa a trabalhar em uma funerária.”

Import export – “Enfermeira ucraniana procura uma vida melhor na Áustria, enquanto um guarda austríaco desempregado tem o mesmo objetivo na Ucrânia.”

Ele não está tão a fim de você “Moça romântica fica frustrada quando sai com um jovem que não liga para ela no dia seguinte. Ela, então, conhece outro rapaz, que lhe ensina sobre o pensamento masculino.”

Eu te amo, cara – “Prestes a se casar, noivo percebe que não tem opções para convidar para padrinho, até que faz um amigo. No entanto, quanto mais eles se aproximam, menos ele deseja contrair o matrimônio.”

Um hotel bom para cachorro “Dois jovens órfãos resolvem abrigar um cachorro num hotel abandonado. Logo, eles começam a levar todos os cachorros para o mesmo local.”

Vocês, os vivos – “Com a câmera estática, o diretor filma 57 vinhetas sobre personagens de Estocolmo que falam sobre conquistas, ansiedades e sofrimento; em comum, todos demonstram um ar solitário.”

Fim de semana

Uma exposição de fotografia – brasileiros e franceses na Pinacoteca.

Um livro de fotografia O Louvre e seus visitantes, de Alécio de Andrade (IMS, 189  págs.).

Outro livro de fotografia – Paisagem moral, de Marcel Gautherot (IMS, 104 págs.).

Uma músicaGang of gin, Babyshambles.

Um lugar para comer mexilhão – Robin de Bois, na Capote Valente.

Um lugar para comer arroz com ovo frito – Souza, vulgo Soiza, na Pompéia.

Um filme okDesejo e perigo, de Ang Lee.

Egopress

1) No próximo domingo, às 21h30, na TV Cultura, vai ao ar uma entrevista que dei para o programa Entrelinhas.

2) Aqui, um texto bastante esclarecedor sobre minha participação num festival de literatura na Coréia, em 2008.

Dois tipos de homem, segundo H.L. Mencken

Trechos do Livro dos insultos (Companhia das Letras, 264 págs.), que acaba de ser relançado:

O médico – “A medicina preventiva é a corrupção da medicina pela moralidade. É impossível encontrar um médico que não avacalhe a sua teoria da saúde com a teoria da virtude (…). Isto resulta num conflito diametral com a idéia da medicina em si. O verdadeiro objetivo da medicina não é tornar o homem virtuoso; é o de protege-lo e salvá-lo das conseqüências de seus vícios. O médico não prega o arrependimento; ele oferece a absolvição.”

O solteiro – “Ao redor de qualquer solteiro com mais de 35 anos florescem muitas lendas (…). Alguns sussurram que, sendo uma nulidade, sua solteirice estaria prestando um serviço aos não-nascidos. Outros fofocam que, aos 26 anos, ele teria se apaixonado perdidamente por uma mulher que o trocou por um corretor de imóveis (…). Tais histórias são, quase sempre, besteiras. A razão pela qual o solteiro mediano de 35 anos prefere continuar solteiro é muito simples. É a de que nenhuma mulher normalmente bonita e inteligente viu qualquer motivo para se casar com ele.”

Mitos do cinema independente

A idéia de que o cinema independente americano traria uma verdade que escapa à produção hollywoodiana típica (ver post anterior) não faz muito sentido. Por duas razões:

1) porque faz tempo que esse cinema é um braço dos grandes estúdios, seja na produção, seja na distribuição. Assim como as majors da indústria fonográfica têm (ou tinham) seus pequenos selos para suprir nichos de mercado, Hollywood soube aproveitar o prestígio de filmes consagrados em festivais como o Sundance para abrir uma frente de negócios bastante lucrativa – já que os custos de produções sem astros nem efeitos especiais são baixos, e a carreira delas no exterior e em DVD costuma ser longa. A família Savage, por exemplo, é da Fox Searchlight, divisão da 20th Century Fox, que por sua vez é a distribuidora internacional do filme.

2) porque a idéia reproduz uma crítica ideológica e obsoleta, segundo a qual o cinemão hollywoodiano seria uma espécie de anestésico receitado às massas, uma propaganda subliminar favorável ao “sistema” e seus alicerces – a economia de mercado, a família, os bons costumes, o conformismo político. O cinema independente, por não depender de grandes financiadores que interferem no processo criativo, impondo sua visão de mundo corporativa e conservadora, é que faria o contraponto mostrando a imagem da “América como ela realmente é”.

Isso poderia ter alguma lógica se não fosse Hollywood, na verdade, a ponta de lança cultural mais evidente da crítica a esse sistema. Para quem duvida, entre muitos outros exemplos, basta conferir alguns dos clichês mais freqüentes nos filmes das 20th Century Fox da vida: numa firma de advogados, os veteranos corruptos assediam o idealista novato; numa guerra ou num quartel, os generais hipócritas e covardes armam para cima de tenentes honestos e corajosos; numa delegacia, o anti-herói descobre um esquema criminoso envolvendo seu chefe; no mundo dos esportes, o entusiasmo do atleta sucumbe diante de dirigentes mafiosos.

Alguém poderia argumentar que a crítica à autoridade é apenas uma forma de veicular o tema do voluntarismo individual, também tão próximo ao imaginário americano. Mas isso não impede que a noção de um poder ilegítimo, sempre baseado na injustiça ou na corrupção, seja a grande fonte de histórias de gêneros tão diversos, que vão do policial ao thriller político, do drama de tribunal ao blockbuster de fantasia. Se isso não é cinema de contestação, cujo alvo recorrente é um modelo de sociedade, o que mais poderia ser?

Um DVD: ‘A família savage’

À primeira vista, A família Savage é um produto típico do chamado cinema independente americano: ali está a família desestruturada, os personagens mais ou menos fora das convenções, as referências literárias e, bem, até Philip Seymour Hoffman e Laura Linney – duas grifes que, embora com a qualidade costumeira, não deixam de ser uma jogada previsível.

Mas o filme tem uma característica que o diferencia desse modelo: a ausência de esforço para ganhar simpatia. Em nenhum momento a diretora e roteirista Tamara Jenkins tira da manga aquela virada providencial da trama, a partir da qual tudo o que parecia triste e bizarro se torna uma espécie de estética, a celebração da falibilidade ou coisa do gênero, algo tão presente na linhagem que nos últimos anos consagrou títulos como Pequena Miss Sunshine e Juno.

Isso se dá por um mecanismo curioso. Uma das mitologias em torno do cinema independente, mesmo aquele financiado por grandes estúdios em algum ponto de sua produção ou distribuição, é a de seu suposto realismo. É como se nesses filmes houvesse uma essência e uma verdade que, por uma série de motivos, escaparia ao produto corriqueiro de Hollywood. Não é bem assim, claro: como qualquer narrativa, Pequena Miss Sunshine e Juno fazem escolhas para, juntando na tela determinados personagens, determinado cenário, determinadas situações e um determinado tom para contá-las, mostrar uma versão sua para o que seria uma determinada realidade. O humor e a doçura desses dois filmes, o carisma dos tipos que ambos descrevem, a agilidade com que seus dramas aparecem, sem falar de fotografia e direção de arte e trilha sonora, todos esses elementos é que dão colorido e vitalidade a uma base no fim das contas um tanto enfadonha – o mundo dos “problemas verdadeiros”, das “pessoas verdadeiras” e, o que nunca falta nas ponderações críticas a respeito, da “América verdadeira”.

Pois A família Savage faz o contrário. A história de um professor universitário e de sua irmã, uma aspirante a dramaturga, ambos forçados a lidar com a demência progressiva do pai, inclui todos os detalhes melancólicos da vida nos asilos baratos, da solidão da meia idade, das carreiras profissionais estagnadas. Há uma ponta de sarcasmo aqui e ali, assim como um leve acento de esperança ao final, mas isso não é suficiente para afastar a sensação geral de desconforto, como se o filme fosse uma história européia escura cuja missão é revelar ao espectador, o que certamente o deixará espantado, como a vida às vezes pode ser dureza.

Em termos de rigor dramático é admirável e tal, mas lá pela metade da exibição dá saudades do velho realismo hollywoodiano. Aquele que o cinema independente bem-sucedido, de forma muito sábia, soube imitar dizendo que fazia o contrário.

Fim de semana

Um documentárioSimonal, ninguém sabe o duro que eu dei, de Claudio Manuel, Calvito Leal e Micael Langer.

Um livroThe songlines, de Bruce Chatwin (Picador, 325 págs.).

Uma músicaEighties fan, Camera Obscura.

Uma exposição meio truque – vídeos franceses no MIS.

Outra exposição meio truque – Vik Muniz no MASP.

Um drink para começar bem a noite – pisco sour.

Um drink para terminar a noite mais ou menos – choconhaque.

Dois inícios entusiasmantes

1) O de um conto de Robert Coover citado por Tom Wolfe em Radical chique e o novo jornalismo (Companhia das Letras, 245 págs.):

“Para conseguir começar, ele foi viver sozinho numa ilha e se matou com um tiro.”

2) O de Excession, de Iain Banks, descrito e devidamente comentado por Nick Hornby neste trecho de Frenesi polissilábico (ver posts anteriores):

“Nada nas poucas páginas que consegui ler era em absoluto ruim; o problema é que não entendi uma palavra. Nem sequer entendi a sinopse na contracapa do livro: ‘Dois mil e quinhentos anos atrás, o artefato apareceu num remoto ponto do espaço sideral, ao lado de um sol moribundo de um trilhão de anos, num universo diferente. Era uma esfera perfeita, negra, que permanecia inerte. De repente, desapareceu. Agora voltou.’ (…) Quando cheguei no primeiro capítulo, intitulado Problema de contexto externo, que começa assim: ‘(CGU Área Cinza, seqüência de sinal arquivo número n428857/119)’, eu chorava tanto que não conseguia mais enxergar a página à minha frente.”

Nick Hornby (2)

Trechos de Frenesi polissilábico (ver post anterior):

Sobre romances curtos – “A obsessão pela austeridade é uma tentativa de (…) fazer com que a literatura se pareça com um trabalho de verdade, tipo pegar na enxada ou derrubar árvores (…) Mandem brasa, jovens escritores – desfrutem de uma piadinha ou de um advérbio! (…) Os leitores não vão se importar! Vocês já viram a grossura dos livros vendidos nos aeroportos? A verdade é que as pessoas curtem informações inúteis. (E, de forma contrária, os escritores dos escritores, os que podam e peneiram, tendem a depender mais da aprovação dos críticos que dos direitos autorais para viverem.)”

Sobre metalinguagem – “O último refúgio do crítico picareta é qualquer versão da seguinte sentença: ‘Em última análise, esse livro é sobre a própria ficção/ esse filme é sobre o próprio filme’. Eu mesmo já usei essa frase, na época em que escrevia críticas sobre vários livros, e posso dizer que é tudo balela: invariavelmente o negócio significa apenas que o filme ou o romance chamou a atenção para o seu próprio estado, o que não nos leva a lugar nenhum, e é o motivo pelo qual o crítico nunca nos diz exatamente o que o romance tem a dizer sobre a própria ficção.”

Sobre No name, de Wilkie Collins – “Se você comprar a edição Classics da Penguin, entretanto, não leia a sinopse na parte de trás. Ela meio que revela a primeira mudança de trama (que, aliás, é fantástica), justificando que a própria é ‘revelada logo cedo’, só que o ‘logo cedo’ acaba sendo a página 96 (…). Aqui vai uma nota para as editoras: algumas pessoas lêem romances do século XIX por diversão, e muitos deles foram escritos para ser lidos dessa forma também.”

Sobre um romance de Michael Frayn comprado num sebo – “‘Se Frayn estiver prestes a entrar na pele de alguém, não é na de Evelyn Waugh, mas na de Gogol’, lê-se na sinopse promocional do livro (…).Pelo que posso entender, a citação é um aviso solene aos fãs do elegante texto de humor inglês de que esse elegante romance inglês de humor não vai ser de interesse deles mesmo. Foi uma tática bem ousada, certamente; os exemplares de uma libra nos levam a crer que ela nunca foi um sucesso.”

Nick Hornby e o frenesi

Pode-se dizer qualquer coisa de Nick Hornby, menos que ele não saiba escrever com fluidez, inteligência e humor. Em seus romances isso nem sempre basta, talvez porque os achados pop que abundam em sua prosa não garantam sozinhos a densidade estética e psicológica que a ficção muitas vezes exige. Não que sejam maus romances, apenas acho que suas qualidades como escritor aparecem mais no formato de não-ficção. É nele que escreveu dois ótimos livros: Febre de bola (Rocco, 248 págs.), suas memórias de torcedor do Arsenal, e o agora lançado Frenesi polissilábico (Rocco, 264 págs.), coletânea de resenhas publicadas na revista americana The Believer.

Na verdade, são menos resenhas que conversas sobre livros – leves, sinceras, repletas da habitual mistura de descrições apaixonadas e auto-ironia, numa constante defesa dos prazeres da leitura descompromissada frente ao engessamento de categorias acadêmicas e ideológicas. E o que é mais importante em se tratando de análise literária: seja falando das obras em si, seja de temas em geral ignorados pela imprensa do meio – o tamanho das histórias, por exemplo, ou a forma como são apresentadas as edições –, os textos trazem a marca inconfundível de autores que pensam sozinhos, mesmo quando erram.

Fim de semana

Uma peça saindo de cartazComunicação a uma academia, com Juliana Galdino e direção de Roberto Alvim.

Um clássico relançadoO livro dos insultos, de H.L. Mencken (Companhia das Letras, 264 págs.).

Um filme ok, mas que dá para sair no meioAleksandra, de Aleksandr Sokúrov.

Um filme ok e do qual se deve sair pelos 15 minutosMilagre em Santa Anna, de Spike Lee.

Uma exposição – Alécio de Andrade, fotografias no IMS/SP.

Uma músicaBeach demon, Wavves.

Um restaurante peruano – Killa, na Tucuna.

Egopress

Aqui, um vídeo que a Companhia das Letras fez – com produção de Renata Megale, Juliana Vettore e Joana Fernandes – para divulgar meu livro.

Duas descrições de cidades

1) Nick Tosches sobre Hong Kong em A última casa de ópio (Conrad, 93 págs.):

“Não havia noite nem dia: apenas a luz do neon, e a voluptuosa escuridão, a meia-noite acelerada e sem fim, a veradeira alma do lugar, que impregnava até a aurora resplandescente, quando o sol e o neon se tornavam, por um instante estático, a bruma elétrica que era o único batimento cardíaco do repouso – de pé, num balcão de bar ou mesa de jogo, ou deitado entre sedas luxuosas e hálitos delicadamente perfumados – que precedia o flamejante despertar de um dragão e de uma cidade que eram um só.”

2) Martin Amis em A informação (Companhia das Letras, 490 págs.):

“Percebeu, no momento em que saiu andando pelas suas ruas, que Nova York era a coisa mais violenta que os homens já haviam feito com qualquer extensão de terra. Mais violenta, a seu modo, que os efeitos produzidos pouco acima de Hiroshima, no ponto zero, no dia da bomba.”

A alma atormentada e a banana

Embora tenha mantido um certo padrão sonoro nos últimos e bem-sucedidos discos que gravou – Time out of mind, Love and theft, Modern times e o recém-lançado Together through life –, Bob Dylan ainda é identificado com a idéia da eterna mudança e, para quem acredita nisso em se tratando de show biz, como uma espécie de catalisador dos tormentos individuais da alma artística. O exato oposto dos Rolling Stones, outra das lendas aparentemente vivas dos anos 1960, que sempre estiveram aí apenas para se divertir – da mesma forma e dando uma banana para qualquer discussão que vincule sua trajetória a argumentos políticos, históricos ou comportamentais.

A dicotomia foi captada por Martin Scorsese em dois documentários disponíveis em DVD, No direction home e Shine a light. Em ambos ele poderia ter optado pela narrativa convencional da cinebiografia, mas preferiu uma forma mais apaixonada de homenagem: no primeiro caso, submergindo na mitologia de extração romântica que o gênio egocêntrico de Dylan sempre alimentou; no segundo, deixando os Stones fazerem aquilo que mais sabem, mais gostam e mais devem mesmo fazer – tocar.

Óbvio que No direction home é um filme mais rico. Mas Shine a Light, com exceção de algumas passagens complacentes, consegue recuperar a eletricidade de Mick Jagger e cia ao vivo, algo que havia sido enterrado por transmissões burocráticas de shows na TV ou por DVDs anteriores e hediondos. É um registro estridente, físico, onde os músicos estão sempre próximos da câmera e se vê Keith Richards cuspindo no microfone ou envolto na fumaça de cigarro. E onde em alguns números, especialmente Jumpin’ Jack flash, Shattered e os duetos com Buddy Guy e Jack White, dá para entender por que os Rolling Stones vêm conseguindo ser os Rolling Stones por tanto tempo.

Fim de semana

Um disco velho, mas bomTogether through life, Bob Dylan.

Outro disco velho, mas bomZii e Zie, Caetano Veloso.

Um filmeAnabazys, de Joel Pizzini e Paloma Rocha.

Uma exposição – fotografias de Dag Alveng na Caixa Cultural Paulista.

Uma coleção de livrosThe New Yorker cartoons, org. de Sérgio Augusto (Desiderata, em três volumes).

Egopress

1) Há um conto meu na antologia Il Brasile per le strade, lançada na Itália pela editora Azimut. Aqui, uma entrevista a respeito com a organizadora e tradutora Silvia Marianecci.

2) Começaram a sair matérias/resenhas/entrevistas sobre O gato diz adeus, algumas neutras/falando bem – Estadão, Folha (Guia de Livros), Jornal do Brasil, Valor Econômico, Zero Hora, + Soma, Correio Braziliense, Gazeta do Povo (Paraná) e em blogs de amigos gentis –, algumas falando mal ou meio mal – Folha (Ilustrada) e Bravo. Se sobrar tempo e faltar um pouco (mais) de constrangimento, publico trechos desse material no blog.

Animais brasileiros (2)

Mais relatos sobre a fauna nacional (ver post anterior), desta vez pelo calvinista francês Jean de Léry (1534-1611), entre uma e outra condenação à nudez dos índios que “pouco diferem dos animais”:

Anta – “Pode-se dizer que, participando de um e outro animal, é semi-vaca e semi-asno”.

Gambá – “Tem mau cheiro e não o comem os índios de boa vontade”.

Preguiça – “Do tamanho de um cão d’água grande, e sua cara de bugio se assemelha a um rosto humano. (…) Por causa das unhas, nossos tupinambás, que andam sempre nus, não gostam de folgar com ele. O que parece fabuloso, mas é referido não só por moradores da terra, bem como por adventícios com longa residência no país, é não ter jamais ninguém visto esse bicho comer, nem no campo nem em casa, e julgam muitos que ele vive de vento”.

Porcos d’água, cavalos armados, peixes que curam

Há muita coisa boa em Brasil, a história contada por quem viu (Mameluco, 652 páginas), com organização de Jorge Caldeira e equipe, uma coletânea de descrições em primeira pessoa que cobrem desde a chegada de Pedro Alvares Cabral – registrada na carta de Pero Vaz de Caminha – até eventos recentes como a queda de Collor, prenunciada pela entrevista célebre de seu irmão à Veja. Entre um e outro ponto, o suicídio de Getúlio Vargas (contado em sua carta de despedida), a estréia de Pelé (numa crônica de Nelson Rodrigues), um relato de Carlos Lacerda sobre um jantar com Jânio às vésperas de sua renúncia e textos como o do missionário Fernão Cardim (c.1540-1625), dirigido a leitores europeus que nunca tinham ouvido falar de animais como:

Capivara – “Desses porcos d’água há muito e são do tamanho dos porcos, mas diferem nas feições.”

Tatu – “Tem o focinho muito comprido, o corpo cheio de coisas parecidas com lâminas, com que fica armado (…). Essas lâminas são tão duras que nenhuma flecha as pode atravessar, se não pelas ilhargas. Furam de tal maneira, já aconteceu de 27 homens com enxadas não poderem cavar tanto quanto um cavava com o focinho (…). É animal para se ver, ao qual chamam de ‘cavalo armado’.”

Peixe-boi – “Nas feições, parece animal terrestre e principalmente boi: a cabeça é toda de boi, com couro, cabelos, orelhas, olhos e língua. (…) Na cabeça, sobre os olhos e junto aos miolos, tem duas pedras de bom tamanho, alvas, e pesadas, que são de muita estima e único remédio para dor de pedra (cálculo renal), porque feita em pó e bebida em vinho, ou água, faz a pedra ser expelida. Certa vez, tomando-a uma pessoa, depois de várias experiências, antes de uma hora expeliu uma pedra do tamanho de uma amêndoa e ficou sã, estando dantes para morrer.(…) São muito grandes e alguns pesam dez, e outros quinze quintais (cada quintal equivale a 60 kg). Já se matou peixe que cem homens não o puderam tirar fora d’água, e nela o desfizeram”.

Festas e fatwas

Esta semana acontece a edição de Los Angeles da já célebre Lebowski Fest, em que a rapaziada joga boliche e toma white russians como se estivesse naquele que é o filme mais alucinado dos irmãos Coen. O evento, que nasceu no Kentucky, mostra que O grande Lebowski ultrapassou as barreiras do cult movie para se incorporar ao imaginário dos Estados Unidos.

Talvez dê para dizer que essa é a forma definitiva de aclamação artística, muito além do mero aplauso de crítica ou do público. O que é uma resenha na Cahiers du cinéma perto de um casamento celebrado por um padre vestido de Darth Vader, ou de um diretor comercial que, como alegremente revelou numa reportagem da Folha há alguns meses, usa métodos do Capitão Nascimento para motivar seus subordinados? É bastante incomum a arte interferir no mundo real. Quando acontece, é uma prova inegável de seu poder – estético, sociológico, moral, seja lá qual for.

Um exemplo do outro lado da moeda, ou seja, da variante mais concreta e sombria de rejeição cultural, costuma ser usado por um amigo quando o assunto é o radicalismo da crítica: a condenação do Aiatolá Khomeini ao romance Os versos satânicos, de Salman Rushdie.