(Publicado no blog da Companhia das Letras):
Martin Amis diz que um dos problemas da crítica literária é que seu instrumento de expressão, o texto, é o mesmo usado pelo objeto de análise, diferentemente do que acontece na música, no cinema, nas artes plásticas. A despeito de sua possível mágoa — compreensível num autor que há décadas apanha em resenhas —, a frase toca num ponto pouco lembrado da eterna guerra entre quem escreve e quem julga.
Na coluna passada, falei dos best sellers de crítica, livros que usam recursos específicos para adular certo leitor experimentado. É a velha piscada de olho, à qual a reação desse leitor se torna previsível. Dá para fazer um paralelo com quem ri de piadas anódinas numa transmissão de Oscar sem dublagem: um pouco para mostrar que conhece outra língua, um pouco por gratidão de estar entendendo. Quando James Joyce declarou que Ulysses tinha enigmas para “ocupar os professores por séculos”, já que essa era “a única forma de garantir a imortalidade”, talvez estivesse sendo mais calculista que irônico: porque o elogio a um livro pode ser, também, uma forma de celebrar a capacidade do crítico — de encontrar sentidos, de transmitir sua erudição, de confrontar visões diversas sobre um mesmo tema, de pensar e escrever bem no final das contas.
Seguindo esse raciocínio, imaginar um leitor ideal, que vai entender e/ou gostar disso ou daquilo, não deixa de ser uma concessão. Em alguns casos, uma variante de suborno estético. Por que escolhemos um nome alusivo para um personagem? Por que usar referências bíblicas, psicanalíticas, literárias e mitológicas em diálogos e cenas? Por que lançar mão de elementos que só contribuirão com o texto externamente, característica indissociável do best seller de crítica, se não for para alguém descobri-los e, sentindo-se orgulhoso de discorrer a respeito, confundir esse prazer narcisístico com a fruição autônoma da obra?
Em teoria, o verdadeiro artista faz sempre o contrário: diz o que precisa, e não o que vai agradar. Mas seria ingênuo tomar essa proposição de maneira pura. No nível mais básico e óbvio, produzimos para nós mesmos e somos nós — nosso crítico interno — que aprovamos a versão final de um texto. Que será enviada para um editor, a segunda instância julgadora, e dali para os leitores, a terceira. O resto são apenas graus maiores (ou mais vulgares) de negociação: quantas vezes não lemos entrevistas em que os autores, sem nenhuma cerimônia, explicam o próprio livro usando conceitos que tiraram de um artigo elogioso a ele? Ou será que, em vez de contar a história do Joãozinho que conhece a sua Maria no supermercado, ou do Zezinho que joga videogame e vê TV e come pizza fria todas as noites, alguém senta diante do computador querendo fazer um panorama-das-relações-amorosas-numa-sociedade-consumista, ou uma radiografia-da-solidão-do-indivíduo-entre-a-abundância-contemporânea-de-informação? O caminho inverso também é comum, e eu mesmo já fui tolo de responder a perguntas sobre meus defeitos — só para ver tais palavras aproveitadas, que surpresa, em resenhas negativas posteriores.
Voltando a Amis: quem sabe a linguagem, a base comum que serve a escritores e críticos, mesmo que em registros diversos, não seja mesmo um problema central nessa relação. O que se sente ao ouvir uma melodia, ou ao se ver uma imagem na tela, ou as cores de uma pintura, em boa medida independe do que outros tenham ou não dito a respeito. É uma emoção imediata, pré-verbal, impossível de ser reproduzida quando a essência do objeto de análise é, bem, verbal. No caso da leitura de um romance, as palavras externas muitas vezes se misturam com as internas, competindo para ver quem fala mais alto e melhor. Se o crítico usa uma metáfora boa para depreciar a metáfora ruim do escritor, automaticamente lhe damos razão. O mesmo vale em relação a outros atributos da obra, que são também atributos do texto que a avalia: prosa, inteligência, poder de observação, humor, carisma.
Por isso, embora seja sempre tentador rir e atirar pedras em quem dá vexame por causa de uma resenha implacável, convém não esquecer que esse também é um exercício crítico: na contramão do exemplo do parágrafo anterior, não é absurdo achar que alguém incapaz de escrever e pensar, em graus que vão do desinformado ao criminoso, não tem credenciais para avaliar a escrita e o pensamento de ninguém.
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