Há formas e formas de fazer crítica literária. Quando o escritor norte-americano David Markson morreu, em 2010, um curioso descobriu que sua biblioteca foi parar nas prateleiras da Strand, livraria/sebo de Nova York, e pôde conferir as anotações que ele deixava nas páginas que lia. Sua maior vítima foi o também escritor americano Don DeLillo: numa cópia do romance Ruído Branco (1985), Markson registrou para a eternidade do folclore literário impressões como “que besteira”, “meu deus, a gravidade, a solenidade”, “isso é o recorde da chatice em todos os tempos” e “é para ser uma sátira, mas (…) uma sátira precisa ser divertida”.
À parte as picuinhas entre colegas, há algum sentido nos comentários. Pinçadas individualmente, algumas frases de DeLillo deixam o leitor desconcertado, na dúvida se está diante de sabedoria ou de pompa vazia, no limite da literatice: “Preparação que ele adquiriu num deserto, setecentos anos antes de nascer” (em Cosmópolis, 2003); “A realidade fica em pé, anda, fica de cócoras. Só que às vezes não faz nada disso” (em Ponto ômega, 2010); “Você sabe melhor quem é num dia de claridade forte depois de uma tempestade, quando a menor das folhas caindo é apunhalada pela autoconsciência” (em A artista do corpo, 2001).
E, no entanto, é possível ler esses trechos de modo dúbio, até irônico. DeLillo gosta de usar o discurso indireto livre, ou seja, uma narrativa em terceira pessoa grudada na consciência de cada personagem. Não é o autor, essa entidade supostamente neutra, que está fazendo aquelas reflexões daquele modo, e sim as criaturas por ele definidas nos limites de um texto de ficção – e elas têm direito a imprecisões, até a eventuais tolices, na subjetividade radical de quem só enxerga o próprio entorno (e, logo, a realidade concreta) em fragmentos por vezes contraditórios entre si.
O procedimento formal de DeLillo seria um mero exercício, talvez uma banalidade, se não estivesse a serviço de uma temática mais ampla. As dúvidas dos personagens integram uma grande pergunta que permeia toda a obra do autor. Considerado uma síntese ficcional da paranoia americana, em títulos que tratavam do assassinato de Kennedy (Libra, 1988) às conspirações que firmaram o domínio geopolítico do país em meio século de história (Submundo, 1997), o conjunto de seus romances e contos se tornou também uma reflexão filosófica, às vezes metafísica, que tenta definir o lugar humano numa sociedade pós-industrial, hipertecnológica.
Para tanto, o tom especulativo de sua prosa foi se radicalizando com as décadas, processo que chega ao ápice em The Silence (Scribner, 128 págs.). Trata-se de um romance cujo tamanho é inversamente proporcional à densidade. A história fala de um evento catastrófico ocorrido em 2022, um misterioso apagão que desliga televisores, celulares e sistemas informatizados de transporte, gerando o caos na vida de cinco personagens reunidos num jantar em Nova York.
Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 12-3-21. Íntegra aqui.
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