Logo no início de Pretend it’s a City, série que fez algum sucesso ano passado na Netflix, Fran Lebowitz conta que gosta de caminhar em Nova York olhando para o chão. Enquanto fala, a escritora americana mostra calçadas enfeitadas com grafites, informações sobre prédios públicos, placas de bronze com frases de grandes nomes da cultura. “Eles têm esperança de que alguém ainda repare nisso”, diz ela, ironizando o fato de que 100% da nossa atenção hoje é voltada não para baixo nem para cima nas cidades, e sim para uma tela de celular.
Penso nos vários aspectos dessa ironia ao olhar para o chão de Berlim. Nas calçadas daqui, há pequenas placas em frente a prédios de onde vítimas do nazismo foram retiradas para serem mortas. Algumas avenidas só existem num espaço urbano aberto pelos bombardeios dos aliados. E há os vestígios dos trinta anos em que a capital foi dividida pela guerra fria. Na Bernauer Strasse, perto da minha casa, pisa-se o tempo todo em lembranças desse último período: marcas de ferro que indicam o lugar onde passava o muro (ele ia de uma ponta a outra da rua), a grama de praças onde antes era o campo de visão dos guardas procurando dissidentes em fuga.
A Bernauer é simbólica por ser a via dos prédios divididos: as fachadas davam para o lado capitalista, os fundos para a então República Democrática Alemã (RDA). Ao longo dos anos de comunismo, os vãos das janelas foram cobertos com tijolos, e os moradores forçados a se mudar. Em meio ao processo, houve dramas de todo tipo – de irmãos separados por décadas a uma grávida que pulou do segundo andar, caiu numa rede de bombeiros e teve o bebê dois dias depois, num hospital de Berlim Ocidental.
Em episódios menos espetaculares, contudo, vê-se também a natureza profunda da RDA: sua capacidade de interferir no cotidiano usando uma máquina de controle cinzenta, metódica. São memórias assim que compõem A Vida dos Outros e a Minha, de Claudia Cavalcanti, livro cujo interesse se deve, antes de mais nada, à perspectiva brasileira usada para narrar (Editora Cultura e Barbárie, 112 págs., lançamento neste mês).
Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 30-7-2021. Íntegra aqui.
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