Michel Laub

Mês: agosto, 2021

Fim de semana

Um romance – Correntes, Olga Tokarczuk (Todavia, 400 págs.).

Um lugar em Berlim – Haus der Statistik.

Outro – Savvy.

Uma exposição em Berlim – Arte apoiada pelo nazismo, no Deutsches Historisches Museum.

Um curta – November, Hito Steyerl (aqui).

Fim de semana

Um documentário – Woodstock 99, Garret Price.

Outro – Das War Thomas Bernhard (aqui).

Um livro – Discurso sobre a Metástase, André Santana (Todavia, 216 págs.).

Um texto – Sarah E. Bond e Joel Christensen contra o mito do herói (aqui).

Uma série de fotos – Nova York e o pós-pandemia (aqui).

Com a ponta dos dedos

Logo no início de Pretend it’s a City, série que fez algum sucesso ano passado na Netflix, Fran Lebowitz conta que gosta de caminhar em Nova York olhando para o chão. Enquanto fala, a escritora americana mostra calçadas enfeitadas com grafites, informações sobre prédios públicos, placas de bronze com frases de grandes nomes da cultura. “Eles têm esperança de que alguém ainda repare nisso”, diz ela, ironizando o fato de que 100% da nossa atenção hoje é voltada não para baixo nem para cima nas cidades, e sim para uma tela de celular.          

Penso nos vários aspectos dessa ironia ao olhar para o chão de Berlim. Nas calçadas daqui, há pequenas placas em frente a prédios de onde vítimas do nazismo foram retiradas para serem mortas. Algumas avenidas só existem num espaço urbano aberto pelos bombardeios dos aliados. E há os vestígios dos trinta anos em que a capital foi dividida pela guerra fria. Na Bernauer Strasse, perto da minha casa, pisa-se o tempo todo em lembranças desse último período: marcas de ferro que indicam o lugar onde passava o muro (ele ia de uma ponta a outra da rua), a grama de praças onde antes era o campo de visão dos guardas procurando dissidentes em fuga.

A Bernauer é simbólica por ser a via dos prédios divididos: as fachadas davam para o lado capitalista, os fundos para a então República Democrática Alemã (RDA). Ao longo dos anos de comunismo, os vãos das janelas foram cobertos com tijolos, e os moradores forçados a se mudar. Em meio ao processo, houve dramas de todo tipo – de irmãos separados por décadas a uma grávida que pulou do segundo andar, caiu numa rede de bombeiros e teve o bebê dois dias depois, num hospital de Berlim Ocidental.

Em episódios menos espetaculares, contudo, vê-se também a natureza profunda da RDA: sua capacidade de interferir no cotidiano usando uma máquina de controle cinzenta, metódica. São memórias assim que compõem A Vida dos Outros e a Minha, de Claudia Cavalcanti, livro cujo interesse se deve, antes de mais nada, à perspectiva brasileira usada para narrar (Editora Cultura e Barbárie, 112 págs., lançamento neste mês).    

Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 30-7-2021. Íntegra aqui.

Fim de Semana

Um disco – Happier Than Ever, Billie Eillish.

Um texto – Donna Ferguson sobre a biografia de WG Sebald (aqui).

Um livro – Susan Sontag: The Complete Rolling Stone Interview, Jonathan Cott (Yale University Press, 145 págs.).

Uma entrevista – Camila Rocha sobre a nova direita brasileira (aqui).

Um filme – As Estátuas Também Morrem, Chris Marker e Alain Resnais.

O julgamento do infinito

No final de 1912, a editora alemã Rowohlt Verlag publicou uma reunião de “poemas em prosa” chamada Contemplação, estreia na literatura de um jovem tcheco chamado Franz Kafka. A tiragem foi modesta, 800 exemplares, e a recepção um tanto morna, com exceção de uma resenha assinada por um compatriota e amigo, Max Brod. “Consigo facilmente imaginar alguém botando as mãos no livro e constatando que sua vida se alterou por inteiro dali por diante”, ele afirmou, num tom que tinha algo de profético para além da banalidade superlativa.

Brod foi um autor de algum sucesso, tendo publicado romances, contos, ensaios e memórias. Seu nome teria se apagado da história literária, contudo, não fosse a decisão célebre que tomou em 1924: desrespeitando a vontade de Kafka expressa pouco antes de morrer, ele se negou a queimar os manuscritos do amigo. Entre eles estavam textos inacabados, que depois de edições póstumas viraram O Processo e Carta ao Pai: obras que só conhecemos porque escaparam pela segunda vez da extinção em 1939, quando Brod fugiu do nazismo num périplo de trem e navio que o levou de Praga a Tel Aviv.

Se a história da fuga é aventuresca, seu final tardio traz uma nota burocrática: em 2016, a Suprema Corte israelense se debruçou sobre uma disputa pela guarda de parte dos papeis. Os litigantes eram as herdeiras da secretária de Brod, para quem ele deixou os direitos em testamento, o arquivo de Marbach, entidade pública alemã para onde elas queriam vender um lote do material, e a Biblioteca Nacional de Israel, interessada no legado de um autor marcado pelo antissemitismo na diáspora. Os detalhes do caso, incluindo as inevitáveis chicanas técnicas e morais dos envolvidos, são narrados no ótimo O Último Processo de Kafka (Arquipelago, 272 págs., tradução de Rodrigo Breunig).

Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 2/7/2021. Íntegra aqui.