Dormir pode ser um ato de resistência? Essa é uma das conclusões que se pode tirar de 24/7, livro que o professor e ensaísta americano Jonathan Crary publicou em 2013. Lançado no Brasil pela Cosac Naify (144 págs, tradução de Joaquim Toledo Jr.), trata-se de um estudo erudito, apocalíptico e, sob alguns aspectos, premonitório daquilo que era menos possível enxergar na época do que é hoje, ao menos para o leigo: um mundo onde a tecnologia se tornou capaz de mapear cada um de nossos atos e emoções. O que, por sua vez, permite a quem domina tais meios uniformizar a vida social em níveis nunca antes pensados.
Crary identifica nas horas que passamos de olhos fechados um tempo alheio a esse controle. Conforme ele mostra em exemplos sinistros, incluindo tentativas de criar um soldado eficaz na vigília ou cidades com luz solar eterna, é lógico que o “escândalo do sono” – sua falta de valor sob uma perspectiva produtivista – seja combatido por empresas, indústria farmacêutica, indústria militar e similares. A ideia de um sistema em que trabalhadores/consumidores funcionem durante todas as horas do dia, todos os dias da semana (daí o título do livro), tem parentesco óbvio com distopias que se tornaram populares na literatura e no cinema do Século XX.
(…)
É curioso pensar em 24/7 ao ler Sonhos no Terceiro Reich (1966), da jornalista alemã Charlotte Beradt, que só agora sai no Brasil (Três Estrelas, 182 págs., tradução de Silvia Bittencourt). Resultado de uma pesquisa secreta conduzida entre 1933 e 1939, esse ensaio/reportagem analisa relatos oníricos que, em sua aparência fragmentária e ilógica, registram a consolidação do nazismo na subjetividade de cidadãos comuns alemães.
Assim, um médico sonha com um decreto que extingue as paredes nos apartamentos. Um funcionário público, com uma “voz suave” que o acorda no meio da noite dizendo ser do “Serviço de Controle de Telefonemas”. Uma mulher, com a proibição das palavras “lord” (“por precaução, devo ter sonhado em inglês”) e “eu”.
Na luta para encontrar uma “forma de expressão para o inexprimível”, os narradores também são premonitórios à sua maneira. A distopia presente em suas histórias, a partir das quais “o eco do dia ressoa de forma terrivelmente alta, terrivelmente baixa, radicalmente simplificada ou exagerada”, viraria realidade quase literal em poucos anos: na lição de Hannah Arendt, influência clara do livro junto com a psicanálise, uma das diferenças entre o totalitarismo do Século XX e tiranias anteriores – por mais sangrentas que elas fossem – foi, justamente, o apagamento das fronteiras entre experiência íntima e pública.
Início de texto publicado no Valor Econômico, 24/11/2019. Íntegra aqui.
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