De volta a São Paulo depois de passar 2021 quase todo fora, constato a piora de tudo que dependia do poder público: preços, miséria, prédios novos e horrendos alheios a qualquer relação com o seu entorno, o que torna a cidade ainda mais segregada nas vizinhanças de classe média e alta. A vida melhorou com as vacinas, claro, mas elas são como um acidente no modo brasileiro de governar: uma iniciativa quase heroica de estados e municípios, a par da dança da morte no baile federal.
Diante de um quadro assim, restam as pequenas alegrias privadas. Há pessoas, memórias, a alegria de abrir um livro na estante de casa. Mesmo com a mão na roda do Kindle, com suas dezenas, centenas de itens arquivados, essa foi uma experiência ausente em Berlim: me deparar com aquele trecho salvador vindo de um título fora de moda, que chama atenção por motivos intermináveis – porque deu saudade das capas daquela editora falida, porque a leitura combina com o chá que acabamos de esquentar, porque algo remete a algo que remete a algo que de repente está diante dos olhos.
Nas últimas semanas voltei a esse universo aleatório e maravilhoso. Num dia, algumas páginas da estreia ruim de um amigo que não melhorou nos trabalhos seguintes. Em outro, um conto que me encantou vinte anos atrás e hoje soa piegas. Durante alguns minutos de intervalo do trabalho, lendo o pdf de um paper enfadonho, um nome me leva a uma personagem que não lembro se está no romance x ou y de um autor inglês superestimado, então procrastino o serviço para conferir a resposta entre meia dúzia de volumes cobertos de pó.
Tudo é alegria numa biblioteca, até os livros errados. Mas nada se compara ao milagre da página certa: ao fuçar na estante de poesia do escritório, me deparei com uma coletânea da americana Elizabeth Bishop (1911-1979).
Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 21/1/2022. Íntegra aqui.
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