Michel Laub

Mês: junho, 2017

Faulkner: poesia e violência

Trechos de Luz em Agosto (Cosac Naify, 440 páginas, tradução de Celso Mauro Paciornik):

“A carroça se arrasta penosamente na direção dela na aura vagarosa e palpável de sonolência e poeira vermelha em que as patas persistentes das mulas se movem como num sonho, pontuadas pelo retinir esparso de arreios e o balouço ágil de orelhas de lebre”.

“Era um trem expresso e nem sempre parava em Jefferson. Ficou ali parado apenas o tempo suficiente para vomitar os dois cães: mil ricas toneladas de intrincadas e curiosas cintilações metálicas se precipitando com estrépito num silêncio quase chocante repleto de murmúrios humanos.”

“Uma parte do maquinário seria abandonada, já que peças novas sempre poderiam ser compradas a prestação – engrenagens gastas, emperradas, petrificadas, projetando-se dos montículos de tijolo quebrado e tufos de mato com uma aparência assombrosa, e caldeiras destruídas por dentro alçando as chaminés ferrugentas e inativas com um ar teimoso, frustrado e estúpido sobre uma paisagem postulada de tocos de silenciosa e profunda desolação, não arada, não semeada, esvaindo-se lentamente em ravinas vermelhas cunhadas debaixo das chuvas longas e mansas do outono e da fúria galopante dos equinócios primaveris.”

“Nesse período ele a veria de longe de vez em quando durante o dia nas dependências traseiras, onde ela se movimentava articulada sob as roupas limpas e austeras que usava, aquela opulência apodrecida pronta para transbordar em putrefação a um toque, como algo crescendo num pântano, sem olhar uma vez sequer para a cabana ou para ele. E quando pensava naquela outra personalidade que parecia existir em algum lugar da própria escuridão física, parecia-lhe que o que agora via à luz do dia era o fantasma de alguém a quem a irmã noturna havia assassinado e que agora perambulava a esmo pelos cenários da antiga paz, privado até do poder de se lamentar.”

“E quando Hightower se aproxima, o cheiro de carne flácida e sem banho e de roupas muito usadas – aquele odor de obstinado sedentarismo, de banhas lavadas sem muita frequência – é quase avassalador. Entrando, Byron pensa como já pensou antes: ‘É o seu direito. Pode não ser o meu jeito, mas é o seu jeito e o seu direito.’ E lembra que uma vez lhe pareceu ter encontrado uma resposta, como que por inspiração, por adivinhação: ‘É o odor da bondade. Claro que cheiraria mal para nós que somos maus e pecadores.’”

“É bem possível que tivesse a impressão de estar parado justo e firme como uma rocha e sem pressa nem ódio enquanto por todos os lados a sordidez da fraqueza humana se agitava num longo suspiro de terror diante do verdadeiro representante do Trono furioso e vingador. Talvez não tenham sido suas mãos que atingiram o rosto do jovem a quem ele alimentara e abrigara e vestira desde criança, e talvez quando o rosto se esquivou do golpe e se endireitou de novo não fosse o rosto daquela criança. Mas isso não poderia surpreendê-lo, pois não era com aquele rosto de criança que ele se preocupava; era com o rosto de Satã.”

“Começou a dizer e repetir para si mesmo Eu não como desde que não como desde tentando se lembrar de quantos dias haviam se passado desde a sexta-feira em Jefferson, no restaurante onde ele jantara, até algum tempo depois, naquele repouso mudo à espera de que os homens comessem e saíssem para o campo, o nome do dia da semana lhe pareceu mais importante que a comida. Porque quando os homens finalmente saíram e ele desceu, emergiu, na invariável claridade baça e foi para a porta da cozinha, não pediu comida. Pretendia pedir. Podia sentir as palavras rudes se armando em sua mente, logo atrás da boca. E então a mulher magra, coriácea, veio até a porta e olhou-o e dava para ver choque e reconhecimento e medo em seus olhos enquanto pensava Ela me conhece. Ela ficou sabendo também ouviu a própria boca falar com toda a calma: ‘Pode me dizer que dia é hoje? Só quero saber que dia é hoje’”

“Comeu algo de uma tigela invisível, com dedos invisíveis: comida invisível. Não se preocupou com o que seria. Nem soube que havia imaginado ou provado até a mandíbula parar subitamente no meio da mastigação e o pensamento voar para vintecinco anos antes na rua, para além de todas as esquinas imperceptíveis de amargas derrotas e mais amargas vitórias, e oito quilômetros além de uma esquina onde costumava esperar nos terríveis primeiros tempos de amor, por alguém cujo nome esquecera; oito quilômetros ainda mais além ele foi Saberei num minuto. Comi isso antes, em algum lugar. Num minuto saberei memória conectando sabendo eu vejo eu vejo eu mais do que vejo ouço eu ouço eu vejo minha cabeça curvar eu ouço a voz dogmática monótona que acho que jamais deixará de continuar e continuar para sempre e espiando eu vejo o projétil indomável a barba rente limpa eles também curvados e eu pensando Como ele pode estar tão sem fome e eu sentindo minha boca e língua gotejando o sal quente da espera meus olhos provando o vapor quente do prato ‘É ervilha’, disse em voz alta. ‘Santo Deus. Ervilhas silvestres cozidas com melaço.’”

“Na densa obscuridade carregada de perfume demulherrrosada atrás da cortina ele se acocorava, espumandorrosa, auscultando suas entranhas, esperando com atônito fatalismo o que estava para lhe acontecer. Então aconteceu. Ele disse para si mesmo com total e passiva rendição: ‘Bom, aqui estou’. Quando a cortina foi aberta ele não olhou para cima. Quando mãos o arrastaram violentamente de seu vômito, não resistiu. Pendia flácido das mãos, olhando com uma idiotia de olhos vidrados e queixo caído para um rosto não mais rosa e branco suave, emoldurado agora por cabelos selvagens e desgrenhados cujas tranças acetinadas antes o faziam pensar em doces. ‘Seu ratinho!’, sibilou a voz fina, enfurecida; ‘seu ratinho! Me espionando! Seu negrinho maldito!’”

“Ele correu diretamente para a cozinha e para a porta, já atirando, quase antes de ter podido ver a mesa virada e apoiada de lado no canto do recinto, e as mãos reluzentes e cintilantes do homem agachado atrás dela apoiadas na borda superior. Grimm esvaziou a câmara da automática na mesa. Mais tarde alguém cobriu todos os cinco tiros com um lenço dobrado (…). Quando os outros chegaram à cozinha, viram a mesa agora afastada para o lado e Grimm inclinado sobre o corpo. Quando se aproximaram para ver o que ele pretendia, viram que o homem ainda não estava morto, e quando perceberam o que Grimm estava fazendo um dos homens soltou um grito abafado e cambaleou para trás até a parede e começou a vomitar. Então Grimm também saltou para trás, atirando para trás a ensanguentada faca de açougueiro. ‘Agora você vai deixar mulheres brancas em paz, mesmo no inferno’, disse.”

“Então lhe parece que uma maldita torrente final dentro dele irrompe e se precipita para longe. Ele parece observá-la, sentindo perder contato com a terra, cada vez mais leve, esvaziando, flutuando. ‘Estou morrendo’, pensa. ‘Devia rezar. Devia tentar rezar,’ Mas não o faz. Não tenta. ‘Com todo o ar, todo o céu, cheio dos gritos perdidos e ignorados de todos os seres que já viveram, lamentando-se ainda como crianças perdidas entre as frias e terríveis estrelas… Eu queria tão pouco. Pedi tão pouco. Pareceria que…’ A roda segue rodando. Gira agora, diminuindo, sem progresso, como se girada por aquela torrente final que irrompera dele, deixando seu corpo vazio e mais leve que uma folha de árvore esquecida e ainda mais trivial que destroços de um naufrágio jazendo gastos e imóveis sobre o parapeito da janela que não tem solidez sob mãos que não têm peso; de modo que pode ser agora Agora É como se eles tivessem esperado até ele poder encontrar alguma coisa para palpitar, para serem reafirmados em triunfo e desejo, para este último resto de honra e orgulho e vida. Ele ouve acima do seu coração o estrondo crescer, múltiplo, retumbante. Como um longo suspiro de vento nas árvores ele começa, então surgem de repente, acompanhados agora por uma nuvem de poeira espectral. Passam em disparada, curvados para frente sobre as selas, brandindo as armas, embaixo de fitas agitadas de lanças inclinadas e impetuosas; com alvoroço e uma gritaria inaudível passam como uma onda cuja crista é recortada pelas cabeças selvagens de cavalos e os braços brandidos por homens como a cratera de um mundo em explosão.”

Gelo, poeira e um amigo

Conto de Lucia Berlin em Manual da Faxineira (Companhia das Letras, 532 páginas, tradução de Sonia Moreira):

“Quando fresco, parece caviar, faz um barulho de cacos de vidro, de alguém mordendo gelo.

Eu mordia gelo quando a limonada acabava, balançando com a minha avó no balanço da varanda. Ficávamos olhando lá para baixo, para o grupo de presidiários acorrentados que estava pavimentando a Upson Street. Um capataz derramava o macadame; os prisioneiros o calcavam com batidas fortes e ritmadas. As correntes retiniam; o macadame fazia barulho de aplausos.

Nós três dizíamos essa palavra com frequência. Minha mãe porque odiava o lugar onde morávamos, sujo e miserável, e agora pelo menos teríamos uma rua de macadame. Minha avó apenas porque queria muito que as coisas ficassem limpas – o macadame iria segurar a poeira. A poeira vermelha texana que o vento soprava para dentro de casa com resíduos cinza da fundição, formando dunas no piso encerado do hall, na mesa de mogno.

Eu dizia macadame em voz alta, para mim mesma, porque parecia um nome para um amigo.”

Fim de semana

Um disco – No Home of the Mind, Bing and Ruth.

Um filme simpático – Paterson, Jim Jarmusch.

Outro – O Cidadão Ilustre, Mariano Cohn e Gastón Duprat.

Uma série de depoimentos – Como a Guerra dos Seis Dias mudou a religião (aqui).

Uma série de fotos – Nazistas nos EUA, anos 30 (aqui).

Egopress

– Nesta quarta, 7/6, às 10h30, estarei numa das mesas da Feira do Livro de Ribeirão Preto. Infos sobre a programação aqui.

– Um conto meu foi publicado na revista croata Knjizevna Smotra, que dedicou seu número mais recente à literatura brasileira. A organização da edição e tradução dos textos é de Tanja Tarbuk.

Shoah na Literatura, dissertação de mestrado de Mônica Klen de Azevedo sobre o narrador de Diário da Queda e a “memória traumática na ficção brasileira contemporânea”, saiu em livro pela Editora Prismas.

– Dois romances foram publicados com orelha e posfácio meus, respectivamente: A Cena Interior, de Marcel Cohen (Ed 34), e o clássico Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár (Companhia das Letras).

Fim de semana

Uma releitura – Luz em Agosto, William Faulkner (Cosac Naify, 440 págs.).

Outra – William Faulkner na Paris Review (aqui).

Um artigo – JM Coetzee e a religião (aqui).

Um filme – David Brent: Life on The Road, Ricky Gervais.

Uma nova temporada – Twin Peaks.