Cem dias entre os tubarões e o tédio
Numa entrevista ao podcast da revista Quatro Cinco Um, que foi ao ar em abril, Amyr Klink relata a Paulo Werneck um experimento que fez durante a quarentena: tentar simular em terra a atmosfera que viveu ao cruzar o Oceano Atlântico a remo, em 1984. Com o velho barco da travessia pendurado numa estrutura geodésica no quintal de casa, em Paraty, o navegador achou que seria divertido lembrar por uma noite do balanço físico e da sensação de confinamento naquela “célula habitável” de 88 cm de altura, menos de um metro de largura e 2,20m de comprimento na qual dormiu, comeu e trabalhou por cem dias.
“Quase fiquei louco lá dentro”, diz Amyr, que desceu do barco em menos de seis horas. Não por claustrofobia ou solidão, problemas que ele evidentemente não tem, e sim pela angústia de estar “parado”, conceito familiar a todos os que atravessamos esses também cem dias em que o mundo deixou de ter novidades – ou, pior, nos sufoca com um excesso de notícias trágicas cujo conjunto causa um efeito de anestesia, ou então uma ansiedade tão difusa que não encontramos chão para enfrentá-la.
Na travessia de 1984, ao contrário, os eventos que se sucederam – tempestades, perrengues com equipamentos, sprays de baleia, arco-íris de lua – apontavam para um sentido narrativo no tempo e no espaço. “É mais fácil enfrentar tubarões do que o tédio?”, pergunta Werneck. A resposta do entrevistado, que lidou bem com as aflições psicológicas durante o percurso, não deixa dúvida: “Eu sentia que estava construindo uma obra, indo para algum lugar, e essa sensação é muito gratificante”.
Início de texto publicado no Valor Econômico, 26/6/2020. Íntegra aqui.