Ruy Fausto sobre Olavo de Carvalho na Piauí de janeiro:
O exemplo que introduzo é o da utilização que [Olavo] faz do conceito de “ideologia” e em particular da sua tese, que circula por todo lado, de que “Bolsonaro não é ideólogo” (ele teria apenas “opiniões”) (…). Na realidade, temos aí um raciocínio vicioso, o que os lógicos chamam de “sofisma”, raciocínio que não visa a ensinar a verdade, mas sim a enganar o interlocutor (…).
De fato, “ideólogo” pode significar, entre outras coisas: 1) um sujeito que aceita grandes sistemas de pensamento, como o liberalismo, o socialismo, o comunismo etc.; 2) alguém que, sem ser cultor bastante coerente de um grande sistema como os citados, tem projetos políticos bem precisos e, mais do que isso, se engaja com muito entusiasmo na sua realização (claro que esses projetos têm a “aura” de ideias políticas, éticas ou religiosas, só que não se fundamentam num “grande sistema”).
É fácil mostrar que Bolsonaro não entra na categoria (1), pois ele não tem nada de teorizante, menos que isso, não tem coerência teórica necessária para que o consideremos como cultor de um grande sistema. Em compensação, encaixa-se bem na categoria (2): é alguém que tem projetos políticos precisos e se engaja com entusiasmo e até com fanatismo na realização deles (projetos que remetem, claro, a um certo número de ideias políticas, éticas ou religiosas, mas não propriamente a um “grande sistema”).
Essa é a situação. Bolsonaro é ideólogo no segundo sentido, mas não no primeiro. Ora, explicitamente, Olavo trabalha com o primeiro sentido, não com o segundo. Explica, por exemplo, que as ideologias são grandes sistemas, e a figura de Bolsonaro não se encaixa como alguém que os cultua. Só que, por baixo do pano, ele trabalha também com o segundo. De fato, o sentido “secreto” da insistência em dizer que “Bolsonaro não tem ideologia” não é o de que ele está alheio às grandes ideologias, mas o de que não seria um sujeito fanatizado por projetos políticos, éticos ou religiosos.
Ora, se a afirmação explícita é verdadeira (“Bolsonaro não é ideólogo”, no sentido de que não cultua grandes sistemas), a segunda afirmação, que fica implícita, mas representa a essência da sua intervenção (“Bolsonaro não é um ideólogo”, no sentido de que não tem um projeto político inspirado por preconceitos morais e religiosos etc.), é evidentemente falsa. Bolsonaro é, sim, um ideólogo, nesse segundo sentido. Ele tem um projeto político, iluminado por preconceitos morais e religiosos, e se engaja com empenho (e até com fanatismo) na sua realização.
Assim, Olavo vende gato por lebre. O leitor desavisado só se dá conta da frase explícita, mas é empurrado sem querer, pelo jogo dos significados, a aceitar a ideia implícita: “Bolsonaro não é perigoso, é um candidato no qual se pode confiar” etc.
Eis aí um bom exemplo, talvez o exemplo-chave, do discurso de Olavo de Carvalho, utilizado também por seus partidários. Uma deputada eleita o empregou para justificar uma eventual “renovação” da equipe de juízes do Supremo Tribunal Federal. Os atuais juízes, segundo ela, eram movidos por motivos “ideológicos”, por isso seria preciso substituí-los (…).
A prosa de Olavo de Carvalho é uma colagem de sofismas, do tipo citado ou de outro. Que um discurso assim possa servir a objetivos políticos é coisa tão velha como o mundo. Já ocorreu na época da sofística grega, embora nesse caso seja preciso levar em conta outros elementos (há variações importantes, de sofista a sofista, e o sofista não era apenas um ilusionista). Mas pode-se dizer que, se considerados como tipos ideais, há uma oposição entre os filósofos, os quais visam a verdade, e os sofistas, que pretendem iludir. Carvalho pertence essencialmente à categoria dos ilusionistas. E tem-se a impressão de que praticou tanto essa arte que, mesmo quando parece querer dizer a verdade, ele não consegue.
Ao analisar discursos neototalitários de esquerda, encontrei neles sofismas do mesmo tipo (ver sobre isso meus artigos na revista eletrônica Fevereiro). Isso não é casual. Tanto nesse caso como no de Olavo, há um afã de inverdade, um esforço por impingir ao interlocutor teses – de extrema direita ou de extrema esquerda totalitária – que são falsas. E, nos dois casos, é pela mídia que a enganação se propaga (…). Às vezes, no caso de Olavo, pelo menos, ela vem recoberta por uma camada de impropérios, o que, paradoxalmente, a torna mais atraente e mais deglutível para o grande público.
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