Michel Laub

Mês: julho, 2011

Fim de semana

Um disco – The king is dead, Decemberists.

Um filme – Barney’s version, Richard J. Lewis.

Um filme fraquinho – Saturno em oposição, Ferzan Ospetek.

Uma peça ok – Pterodátilos, dir. Felipe Hirsch.

Um steak au poivre – Papillon.

Um cupim com Serra Malte – Sachinha.

Uma edição – A outra volta do parafuso, Henry James (Penguin/Companhia, 200 págs.).

Seis propostas para o romance – por Ana Paula Maia

(Autora de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e do recém-lançado Carvão animal):

1. Esteja seguro do que está escrevendo.

2. Evite personagens em crise existencial e que resmunguem demais.

3. Conclua cada capítulo com esmero.

4. Acredite em seus personagens para que eles tenham vida.

5. Fuja da trivialidade.

6. O autor pode ser desinteressante, mas o texto não. Respeite o leitor.

Seis propostas para o conto – por Santiago Nazarian

(Autor de Mastigando humanos e do recém-lançado Pornofantasma):

1. Esqueça seus sentimentos. Os sentimentos de um escritor não se comunicam e não interessam ao ser humano normal. Concentre-se numa história.

2. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Caetano Veloso, Chico Buarque e Fellini são senso comum, não são referências válidas. O mundo não precisa de mais um contista influenciado por esses.

3. Escreva em jejum de sexo. Hormônios satisfeitos não rendem boas histórias.

4. Caminhar pelas as ruas é bom para inspiração, desde que você não observe a realidade. Não observe a realidade. A realidade não importa. Mas cuidado para não ser atropelado.

5. Escreva um romance nos moldes contemporâneos: mais ou menos 40 mil toques, ou aproximadamente cem páginas, em fonte Arial 16, espaçamento triplo, com diversas páginas em branco para respiro, quebra de capítulo etc. Depois diagrame em espaçamento 1.5, fonte Times New Roman 12 e delete as páginas em branco. Pronto, você tem um conto de tamanho respeitável.

6. Não busque fórmulas, não frequente oficinas e, principalmente, não siga conselhos de outros escritores.

Seis propostas para a poesia – por Joca Reiners Terron

(Autor de Animal anônimo e Do fundo do poço se vê a lua):

1. A poesia só nasce quando estamos sozinhos, penabundeados ou solitários por escolha. Para bebês-poemas virem à luz, é necessário ser 1) jovem. Ou então ser 2) velho, porém manter o espírito jovem, ou livre, o que no fundo é a mesma coisa. Contudo, atenção: existe um tipo de amizade nesse período inicial da vida, baseada na descoberta do outro, e tal encontro (tão raro) costuma ser frutífero para a poesia. Dele nascem escolas poéticas, guerras entre escolas poéticas, poeticídios de todo gênero, a origem e o fim do mundo.

2. A poesia não deve ser publicada online em nenhuma hipótese, pois isto impediria que leitores-poetas transformem os livros de poemas que amam numa parte essencial de si mesmos, com a qual dormem, perambulam com eles nos bolsos das calças pelos locais mais inóspitos, e que lancem neles seus fluidos corporais.

3. O poeta não deve nunca presentear seus livros, e sim destruí-los por conta própria. Foi Monterroso quem falou isso (ou mais ou menos isso), mas não custa repetir. Os livros que contêm a única poesia que verdadeiramente amamos são encontrados somente a duras penas, em sebos obscuros de cidades distantes visitadas num verão fracassado, ou então foram roubados das bibliotecas de amigos.

4. A poesia que não traz intensa carga subjetiva não interessa a ninguém. Isso indica que, para que sua poesia seja digna de algum interesse, você precisa viver, e mais do que isto, viver interessantissimamente. O resto (a observação de vísceras sob a lâmina fria de um laboratório asséptico) não é poesia, mas outra engenhoca qualquer que não fede nem cheira, feita só para impressionar. E poesia tem de feder.

5. Aceite entrar num clube apenas para ter o prazer de sair um segundo depois de entrar. Se a dissidência acontecer com alguma pancadaria, melhor ainda, pois poemas são meio vampiros e gostam de sangue.

6. Nunca cague regras. E sempre se contradiga.

Seis propostas para a crônica – por João Paulo Cuenca

(Autor de O único final feliz para uma história de amor é um acidente e comentarista da Globo News):

1. O cronista anda a pé. Sua escrita é que não pode ser pedestre.

2- O cronista deve fugir do rodapé das notícias, da opinião sobre o assunto da semana.

3. A crônica é o pingente do jornal. Depende do cronista se é uma joia ou não.

4. O cronista vive em estado de eterna indiscrição consigo mesmo e com tudo que o cerca.

5. O cronista olha a cidade como uma criança, olha a cidade como um estrangeiro. O cronista não se acostuma.

6. O cronista despretensiosamente registra o épico e o grandioso que há nos pequenos episódios da vida.

Seis propostas para os quadrinhos – por Cardoso

(Autor de Cavernas e concubinas e da HQ Supercomunismoparacaralho, em parceria com Alan Sieber e sem previsão de lançamento):

1. Mais humor, por favor – Nada contra quadrinhos sérios, densos, cheios de tramoias psicológicas e profundas discussões sobre a condição humana, mas só porque é adulto não quer dizer que precise ser SEMPRE sisudo. Notem que me refiro especificamente a graphic novels aqui: sei que temos uma forte tradição de quadrinhos de humor, com uma presença bastante forte na internet. Todavia, boa parte dessa produção se resume a tirinhas e histórias curtas, de menos de 20 páginas.

2. Pense localmente, haja globalmente Quadrinhos situados em cidades fictícias como Gotham, Patópolis, Pequenópolis e a Nova York são muito legais, mas bem que podiam começar a incluir uns lugares como Porto Alegre, Teófilo Otoni ou Feira de Santana como cenário. E não só en passant, mas radicalmente. Personagens praticando o encontro sensual no Masp, se perdendo dos amigos na Cinelândia, atacados por um tubarão na praia da Boa Viagem.

3. Cruza de gêneros sem limites – Quadrinhos sobre futebol, MMA e atletismo. Quadrinhos sobre cerveja artesanal, bistrôs perobos afrancesados e descrevendo receitas complexas em detalhes. Quadrinhos sobre videogame, internet e celulares. Quadrinhos poéticos, cinematográficos, com trilha sonora. Quadrinhos sobre quadrinhos, finanças, tendências de moda e comportamento. Não necessariamente tudo junto. Mas eventualmente também.

4. Hipocondrinhos – Salvo ledo engano, ninguém explorou ainda a dicotomia saúde/doença de forma realmente marcante nas histórias em quadrinhos. Muito se falou de abuso de substâncias controladas e medicamentos, e há muita mutilação, machucadura e morte, mas muito pouco sobre hérnia de hiato, bico de papagaio e doença celíaca (isso pra não falar em hipotireoidismo, TOC, depressão e HPV). Uma exceção honrosa é a ótima Mom’s Cancer, de Brian Fies.

5. Quadrinhos de pendurar na parede Que tenham boas histórias, que tenham bons personagens, mas também que sejam esteticamente aniquiladores e digam muito mais coisas no traço, nas cores e na disposição dos painéis do que nos balões de diálogo e caixas de texto. Se a história não fosse tão modorrenta, Jimmy Corrigan, de Chris Ware, poderia ser o exemplo perfeito.

6. Fantasia, ilusão e escapismo Também conhecido como “vamos dar um tempo nos quadrinhos autobiográficos”. Muita coisa legal já saiu, mas muita coisa ruim também. Talvez seja hora de voltar a inventar histórias, situações e personagens (muito embora todos saibam que os melhores personagens são sempre baseados – pelo menos em parte – em pessoas reais).

Seis propostas para a crítica – por Antônio Xerxenesky

(Mestrando em literatura comparada na UFRGS e autor do recém-lançado A página assombrada por fantasmas):

1. Menos atenção ao marketing. Sim, os novos escritores estão preocupados em vender seu peixe. Sim, eles usam redes sociais a seu favor. Sim, eles frequentam os mesmos bares e conversam entre si. Não, isso não é relevante na hora da crítica. A crítica deve analisar a obra, não as opiniões e performances da vida virtual e real do autor.

2. Uma crítica mais interpretativa. As resenhas de jornais, em seu espaço reduzido, muitas vezes se assemelham a um guia de compras, com direito a avaliações de “bom” ou “ruim”. Seria legal ver, para além da opinião discutindo se o romance X merece seu tempo e dinheiro, uma crítica que oferecesse interpretações do crítico para a obra, buscando “validades, não verdades”, como postulou Barthes.

3. Há um ser humano por trás do escritor. Claro, é dever do crítico atacar o que acha que deve ser atacado. Ele não pode esquecer, todavia, que há uma pessoa de carne e osso, como ele, por trás da obra. Um mínimo de tato não faz mal a ninguém. E um anexo: evite detonar livros de estreia – a crítica pode ser tão traumática para o escritor que ele nunca mais se arriscará a escrever uma só linha. Tratando-se de um segundo livro, porém, a sinceridade brutal está liberada.

4. Acadêmicos: não esqueçam o contemporâneo; escritores: não esqueçam a teoria. Nada tenho contra a crítica praticada por professores de Letras ou a feita por escritores, mas o ideal seria que todos tivessem conhecimento para além de sua área mais imediata. Ou seja: acadêmicos devoradores de literatura contemporânea (estrangeira e nacional) e escritores familiarizados com teoria literária e o (sempre questionado) cânone.

5. Por favor, faça-me rir. Muita gente discordou da polêmica resenha de Maurício Raposo na última Copa de Literatura Brasileira, mas quase todo mundo gargalhou com ela. Muitos comentaram: por que não vemos esse tipo de coisa no jornal impresso? Não seria ótimo encontrar um texto (arriscadamente) cômico como esse nos jornais?

6. Amigos até certo ponto. Evite resenhar livro de amigo. Se for inevitável, lembre-se que o melhor amigo é o sincero, capaz de dizer ao outro que ele está se comportando feito um idiota. Da mesma forma, evite muito resenhar livro de algum desafeto. A crítica não é o espaço para resolver desentendimentos pessoais. Este lugar se chama “bar”.

Uma DR no restaurante

Ao descobrir que ela o traiu, Jeff Goldblum marca um encontro com a amante Amanda Peet em Igby goes down:

Fim de semana

Um livro – Stálin, a corte do czar vermelho, Simon Sebag Montefiore (Companhia das Letras, 860 págs.).

Um documentário didático com imagens ótimas – Staline, le tyran rouge (aqui).

Um disco – Cults.

Uma exposição em Porto Alegre – Na Tábua, Museu do Trabalho.

Um galeto perto de Bento Gonçalves/RS – Canta Maria.

Discurso do dia

Via @lordass.

As influências confessáveis

(Publicado no blog da Companhia das Letras):

Por uma série de motivos, entre eles o Código Penal, é difícil para o escritor ser sincero sobre influências. Ou ser exato, já que matrizes de ideias, técnicas e estilo muitas vezes são marcas involuntárias numa obra. Mas há tipos de influência que não há mal em admitir, e que são tão ou mais importantes que as sofridas quando já se tem consciência de ofício.

A primeira é a mais básica: a que faz alguém virar leitor, condição sem a qual não se vira escritor. Na infância remota não é algo que se relacione diretamente com o manejo do texto: pode ser a mãe contando a mesma história ao pé da cama e fazendo a criança se familiarizar com o beabá da narrativa – personagens, suspense, clímax, catarse. Pode ser a visão da mãe segurando esse livro, com a criança percebendo que os universos e personagens descritos estranhamente vivem dentro dele. Ou o primeiro volume ganho de presente, quando nos acostumamos ao seu manuseio e funcionamento – virar a página e esperar um desenho, uma cor, uma textura ou um relevo diverso na sequência, o que não deixa de ser uma forma de expectativa ficcional.

Mais tarde vem o período crítico: quando começamos a ler sozinhos e sem ajuda de ilustrações – e aí os quadrinhos, de modo contraditório, podem cumprir um papel importante – e quando tal hábito precisa vencer distrações e vícios menos trabalhosos e mais sociáveis. Nesse caminho há aspectos mundanos, como a identificação da literatura ou dos escritores com algum modelo emocionante de dia-a-dia, estímulo bastante considerável quando se tem 11, 14 ou 20 anos. No meu caso, os protagonistas de Rubem Fonseca, que desvendavam crimes e viviam cercados de mulheres ao mesmo tempo em que eram leitores enciclopédicos, e as colunas de Paulo Francis, que exalavam charme intelectualizado em meio a um suposto luxo e glamour da então capital do mundo, cumpriram um papel que jamais seria possível a um professor obrigado a dar aulas sobre Lucíola, A moreninha ou Eu vi a linda Jônia.

A partir da leitura começa a se formar o instrumento, a linguagem, por meio do qual a necessidade de expressão, que é um tanto vocacional, sai das entranhas do escritor para a página. É um processo que também não se conclui sem um empurrão das circunstâncias. A existência do narrador inconfiável, por exemplo, não veio para mim da leitura de mestres na técnica – um Henry James, um Ford Madox Ford, um Machado de Assis –, e sim de um romance de Agatha Christie cujo protagonista se revela o assassino ao final. Não fosse assim, porque teria sido em outra idade, numa leitura com outro tipo de mediação, grau de inocência e objetivo, o recurso talvez não causasse tanta surpresa e impacto – e não acabaria se tornando tão importante na composição dos meus próprios romances.

O mesmo dá para dizer de descobertas que nada devem aos livros ou ao mundo que os cerca. É possível que passar as tardes ouvindo música dos anos 80 tenha me dado a noção, com o devido ridículo acoplado, de que a beleza quase sempre é triste. Filmes na linhagem Clube dos 5 talvez sejam a origem do existencialismo aguado dos meus primeiros contos. Ter sido surfista, num capítulo biográfico meio constrangedor, foi a motivação óbvia para meu segundo romance. Daria para seguir lembrando como surgiram conclusões que não viraram regras estritas, mas exercem marcas nos textos que publiquei: a implicância com metáforas e retórica, a preferência por mostrar em vez de dizer, um certo ritmo das frases – também vindo da música, é provável – e até algumas superstições, como a de ao menos uma vez por livro usar a palavra “leite”.

É só porque são tantos fatores envolvidos, a lista quase infinita que compõe a experiência total de uma pessoa, que é possível falar em vozes literárias singulares num mundo tão repleto de escritores e histórias. A originalidade pura não existe, mas também não existe indivíduo igual ao outro. Agora, como tirar vantagem desse fato e soar único ao leitor, de maneira que você não seja confundido com suas referências, tanto as visíveis quanto as escondidas, é uma conversa um pouco mais complicada.

Fim de semana

Um livro Guerra aérea e literatura, W.G. Sebald (Companhia das Letras, 132 págs.).

Um disco – Smoke ring for my halo, Kurt Vile.

Um perfil – Daniela Pinheiro sobre Ricardo Teixeira na Piauí.

Um trecho de livro – Daniel Pellizzari sobre Dublin também na Piauí.

Uma churrascaria de R$ 15 em Porto Alegre – Freio de Ouro.

Um ensaio fotográfico – Mulheres embaixo d’água por Jill Greenberg (aqui).

Um jogo de cara ou coroa que dá sempre cara

Abertura de Rosencrantz & Guildenstern are dead (1990), filme de  Tom Stoppard baseado em sua própria peça. Os protagonistas são dois personagens secundários de Hamlet que, bem, o título do filme em Portugal é Eles morreram:

Links

(@michellaub):

– História da música moderna com linha do tempo interativa e centenas de artigos: http://bit.ly/lT5ANH

– Escritores falando mal de outros escritores: http://bit.ly/jxhBn3

– Fotos antigas de pessoas na praia: http://bit.ly/mcfYMG , via @alexandrerodrig

– Entrevista com David LaChapelle: http://nyti.ms/jdCOT1

– Cartazes poloneses de filmes: http://bit.ly/17bcs

– Andrew Wylie sobre mercado de livros e Luiz Schwarcz sobre papel/diagramação/tipologia: http://on.wsj.com/kEX1cf  + http://bit.ly/j1NtHa

– Capas da Neewsweek sobre corrida espacial: http://bit.ly/gtswwX

– Família fotografada todo ano desde 1976: http://bit.ly/BLZSl

– Piscina que virou museu em Lille: http://bit.ly/kyv9do

– Bret Easton Ellis sobre Charlie Sheen: http://bit.ly/jFXbdq

– Cidades americanas durante a Guerra Civil: http://bit.ly/kupX9F

– Propaganda via aérea na época do Muro de Berlim: http://bit.ly/gnTIVK

– Desenhos de Kafka: http://bit.ly/kzoPH3 , via @_jag e @almirdefreitas

Fim de semana

Uma peça  Escuro, Cia. Hiato.

Uma exposição  fotos do Bom Retiro no Centro de Cultura Judaica.

Um livro  Só garotos, Patti Smith (Companhia das Letras, 280 págs.).

Uma entrevista – Salinger, a II Guerra e textos inéditos segundo o seu biógrafo (aqui).

Um disco meio açucarado  Barton hollow, Civil Wars.

Um disco para quem tem paciência para ukulele – Ukulele songs, Eddie Vedder.

Uma reabertura – Pasquale, agora na Girassol.

Egopress

Diário da queda teve os direitos para o cinema comprados pela RT Features e sairá na Alemanha pela Klett-Kotta. Aqui, lista atualizada de resenhas e entrevistas.

– O romance também será tema Clube do Livro Penguin + Companhia das Letras que acontece sábado, 9/7, às 16h, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon/Porto Alegre. Estarei lá.

– Agora o blog tem botõezinhos de compartilhamento em redes sociais. De resto, continua orgulhosamente 1.0.

‘Curto alcance’, de Annie Proulx

(Publicado na Folha de S.Paulo, 2007):

Vencedora dos prêmios Pulitzer e National Book Award, mas ainda pouco conhecida no Brasil, Annie Proulx não deixa de ser uma novidade no panorama da prosa norte-americana. O leitor que teve contato com seu universo por meio do filme Brokeback Mountain, adaptação melancólica e algo romântica de Ang Lee para um dos contos presentes no agora lançado Curto Alcance (Intrínseca, 337 págs., tradução de Adalgisa Campos da Silva), talvez fique surpreso pela secura, a ironia e o grau de violência destas histórias.

Nelas, a autora põe em cena a vida de Wyoming, a “terra dos cowboys”, um estado cuja vida se divide entre as paisagens deslumbrantes, que remetem ao imaginário típico do western, e a vida em pequenas cidades onde circulam vaqueiros, motoristas de caminhão e pequenos comerciantes que vivem do turismo. Por toda parte, o lema não escrito é “você que cuide da porra da sua vida”. As famílias se desintegram, os velhos acabam seus dias sozinhos, as mulheres enlouquecem isoladas em fazendas, mas quem tem braços para trabalhar precisa ir adiante enfrentando invernos terríveis, quedas dos preços agrícolas, desemprego.

O tom típico dos relatos é o de um aparente distanciamento, cujo impacto vem da exatidão das descrições e da originalidade das metáforas: um cadáver é uma “lata de carne seca”, a respiração do gado no frio são “balões de diálogo de histórias em quadrinhos”, alguém parece “um advogado especializado em direitos sobre a água”, e a discreta poesia dessas passagens é sempre intercalada com a brutalidade – o filho que dá uma surra no pai, a mãe que joga o bebê no rio, o peão morto com uma chave de roda.

Não se engana quem vê na mistura a sombra de William Faulkner. Há ressonâncias e possíveis homenagens ao autor de O som e a fúria, como na história do deficiente mental castrado por “se exibir” para mulheres da vizinhança (Quem vive no inferno se satisfaz com um gole d’água). Porque tanto para Faulkner, que retratou um sul assombrado pela herança do escravismo, quanto para Proulx, cujo horror poderia ter como única origem a pobreza e o atraso, a violência tem um caráter mítico, muito mais arquetípico do que histórico.

Faulkner tratou do tema principalmente por meio da subjetividade dos narradores em primeira pessoa, cuja convicção, diz Vargas Llosa, potencializa ainda mais a insensatez descrita. Seus personagens se caracterizam por uma inadequação fundamental, nascida de um trauma ou de um desejo íntimo, e suas trajetórias são marcadas pelo combate inglório contra o próprio destino. Já Proulx prefere um outro registro, geralmente em terceira pessoa, uma visão panorâmica que dá importância maior ao cenário do que à psicologia. “Nenhuma carnificina ou crueldade passada”, ela escreve, “nenhum acidente ou assassinato ocorrido nas fazendolas ou nas encruzilhadas ermas com suas minguadas populações de três ou dezessete habitantes, ou nos inseguros parques para reboques de cidades mineiras, retarda a inundação da luz matinal”

Sob o peso dessa indiferença, as criaturas do livro assumem um caráter trágico ainda mais acentuado. Alguns, como o astro de rodeios Diamont Felts, do excelente Num Lamaçal, aceita pagar no futuro o preço amargo por suas escolhas do presente. Outros, como o Leeland Lee de A história de Jó, conto de título sintomático, quase chegam a encarnar uma santidade em meio a uma vida cheia de revezes. Para todos eles, é como se o cotidiano de rodeios, cercas partidas, caminhonetes abarrotadas de ferramentas e pumas que devoram bezerros fosse mera distração antes do fim inevitável, que qualquer criança em Wyoming conhece.

Não por acaso, é assim que termina Brokeback Mountain: “Havia um espaço aberto entre aquilo que ele sabia e aquilo em que tentava acreditar, mas nada se podia fazer a respeito”. Na resignação, que mais cedo ou mais tarde sublinha todas as cenas de Curto Alcance, está a única arma individual contra um mundo feito de hostilidade. Esteja ela nas campinas, nos barrancos, nas montanhas ou dentro de cada um.

Fim de semana

Um disco Yuck.

Um perfil/entrevista Philip Roth no Financial Times (aqui)

Um livrinho – Otherwise pandemonium, Nick Horby (Pocket Penguin, 58 págs.).

Um filmeco – Se beber não case 2.

Uma exposição que poderia ser um catálogo – Arquitetura sustentável no MAM.

Um restaurante português – Ora pois, na Fidalga.