Michel Laub

Mês: maio, 2013

Feriado

Um documentário – Inside deep throat, Fenton Bailey e Randy Barbato.

Um romance – A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, Joca Terron (Companhia das Letras, 176 págs.).

Um disco – Trouble will find me, The National.

Uma filial perto de casa – Do.

Outra – St. Louis.

Hervé Guibert, Thomas Bernhard e a aids

Hervé Guibert (1955-1991) em seu relato autobiográfico Para o amigo que não me salvou a vida, de 1990 (José Olímpio, 142 págs., tradução de Mariza Campos da Paz):

“Eu odiava este Thomas Bernhard, ele era inegavelmente bem melhor escritor que eu, mas não passava de um enchedor de linguiça, um enrolador, um masturbador intelectual, um fazedor de obviedades silogísticas, um virgem tuberculoso, um tergiversador enganador (…), um contador de vantagens que fazia tudo melhor que todo mundo, andar de bicicleta, livros, pregar pregos, tocar violino, canto, filosofia e uma raiva limitadora, um urso mal-humorado cheio de tiques à força de dar sempre as mesmas patadas, com sua gorda pata pesada, pata teimosa de babaca holandês, sobre as mesmas quimeras, seu país natal e seus patriotas, os nazistas e os socialistas, as freiras, gente de teatro, todos os outros escritores e especialmente os bons, assim como os críticos literários que incensassem ou desprezassem os seus livros, sim, um pobre Dom Quixote imbuído de si mesmo, esse miserável vienense traidor em todos os sentidos, que nunca acabava de proclamar sua genialidade ao longo de seus livros, que não passavam de coisinhas insignificantes, de ideiazinhas, de rancorezinhos, de imagenzinhas, de impotenciazinhas sobre as quais esse mau violinista enrolava e enchia linguiça em duzentas páginas, sem se mover o mínimo sobre o fragmento que tinha se proposto a polir, com sua inigualável grandeza, até o clarão final ou o apagamento (…), prendendo a atenção do leitor com as repetições de sua mesmice obsessiva, trabalhando os nervos deles com pequenos golpes de arco tão exasperantes como um disco com um sulco arranhado (…). Tinha tido a imprudência, por minha vez, de entrar num jogo de xadrez renhido com Thomas Bernhard. A metástase bernhardiana, semelhante à progressão do vírus HIV que destrói no interior do meu sangue os linfócitos, fazendo desmoronar minhas defesas imunológicas, meus T4, diga-se de passagem no desvio de uma frase (…), a 12 de janeiro o doutor Chandi me revelou pelo telefone que a taxa deles tinha caído para 291 (…), o que dá margem a pensar que depois de um mês (…) minha taxa não passará de (…) 213, me colocando assim (…) fora da possibilidade da experiência da vacina de Mockney e de seu eventual milagre, e beirando o limite catastrófico que deveria ser recuado pela absorção do AZT se eu o preferir à Digitalina (…), e se ainda por cima o meu corpo tolerar essa quimioterapia (…) a metástase bernhardiana se propagou à velocidade com V maiúsculo nos meus tecidos e nos meus reflexos vitais da escrita, ela a fagocita, a absorve, cativa-a, destrói toda a sua naturalidade e personalidade para estender sobre ela sua dominação devastadora. Assim como tenho ainda a esperança (…) de receber em mim a vacina Mockney, que me livrará do vírus HIV (…), espero com impaciência a vacina literária que me livrará do sortilégio que me infligi de propósito por intermédio de Thomas Bernhard, transformando a observação e admiração de sua escrita (…) em motivo de paródia (…), escrevendo assim um livro essencialmente bernhardiano (…), realizando pela trucagem de uma ficção imitativa uma espécie de ensaio sobre Thomas Bernhard, com o qual de fato quis rivalizar, quis pegar pelo alto e superar na sua própria monstruosidade, como ele próprio fez ensaios falsos disfarçados sobre Glenn Gould, Mendelssohn-Bertholdy, ou, acho, Tintoretto, e como ao contrário do seu personagem Wertheimer, que renunciou a se tornar um virtuose do piano no dia em que ouviu Glenn Gould tocar as Variações Goldberg, eu não baixei os braços diante da compreensão do gênio, ao contrário, me rebelei diante da virtuosidade de Thomas Bernhard, e eu, pobre Guibert, entrava no jogo para valer, polia minhas armas para igualar um mestre contemporâneo, eu pobre pequeno Guibert, ex-senhor do mundo que havia encontrado algo mais forte que ele na Aids e em Thomas Bernhard.”

Fim de semana

Um filme – O que se move, Caetano Gotardo.

Um filme para rever – Man on the moon, Milos Forman.

Outro – O jornal, Ron Howard.

Um disco – Fandango, The Phoenix Foundation.

Um pão de queijo na estrada – Graal.

Egopress

1) Nesta quarta, 22/5, às 19h30, participo de uma conversa no Sesc de Araraquara/SP. Agenda para as próximas semanas: Hebraica/SP (25/5, 16h); Feira de Ribeirão Preto/SP (9/6, 14h, oficina); Feira de Canoas/RS (13/6, 15h, debate com Daniel Galera e Reginaldo Pujol Filho); Livraria da Vila de Higienópolis/SP (18/6, 19h30, debate com Noemi Jaffe); Sesc Santo Amaro/SP (27/6, 20h, debate com Miguel Sanches Neto, Andrea Del Fuego e Josélia Aguiar).

2) Um conto meu saiu na coletânea alemã Popcorn Unterm Zuckerhut (Verlag Klaus Wagenbach), organizada por Timo Berger, que tem outros 19 escritores brasileiros. Mais informações aqui.

Links

– Saul Bellow segundo seus filhos: http://goo.gl/SuYrH

– Imre Kertész entrevista a si mesmo: http://goo.gl/nqzPz

– A biblioteca de Paulo Francis: http://goo.gl/xuq1g

– Mapa de gêneros musicais com anotações: http://goo.gl/GczKd

– ‘This is water’, de David Foster Wallace, em áudio: http://goo.gl/h4UDD

– Autenticidade, sinceridade e ironia, por Daniel Pellizzari: http://goo.gl/oh0jf

– Uma avalanche em texto, imagens, vídeos e animações: http://goo.gl/TmGk0

– Um ano sem internet: http://goo.gl/lcjiA

– Vacinas usadas com fins militares: http://goo.gl/6AQpV

– Sobre literatura brasileira no exterior: http://goo.gl/oYvaM.

– Sobre escritores brasileiros na Alemanha: http://goo.gl/Lw94z

– Miguel Sanches e a primeira pessoa na literatura: http://goo.gl/C3Jqc

– Herzog e as filmagens de ‘Fitzcarraldo’: http://goo.gl/ucInt

– Eduardo Pinheiro sobre big data: http://goo.gl/cbnbF

– Hermano Viana, 1983, sobre o rock de Brasília: http://goo.gl/pglkB

– Livros para entender o Brasil, por Antonio Candido: http://goo.gl/QGOMz

Fim de semana

Um filme – Depois de maio, Olivier Assayas.

Um documentário – We were here, David Weissman.

Um livro (a propósito) – Para o amigo que não me salvou a vida, Hervé Guibert (José Olympio, 142 págs.).

Um roteador – TP-Link TL–WR941ND

Uma confeitaria – La bombe.

Existe amor no FB

Num dos textos mais bonitos da língua portuguesa, o “Sermão do Mandato”, padre Antonio Vieira comenta as ignorâncias que impedem o amor de florescer no vale de lágrimas onde vivemos: não conhecer a si mesmo, não entender o amor, não saber onde o amor vai dar, não enxergar a natureza do objeto amado.

Não sei se Jonathan Franzen leu o padre Vieira, mas num ensaio curto, na verdade o discurso de formatura que abre a coletânea “Como Ficar Sozinho” (Companhia das Letras), de certo modo aderiu a um esporte comum quando o assunto são as redes sociais: atualizar os quatro preceitos, definindo o que seriam as relações sentimentais verdadeiras.

Texto publicado na Folha de S. Paulo em 01/02/2013. Íntegra aqui.

Spike Lee, Tarantino e racismo

Linguagem é poder, como sabem economistas, advogados, marqueteiros e qualquer um que use jargão para demonstrar autoridade. Logo, é também política: uma guerra começa a ser ganha quando um indivíduo é chamado de “militante” em vez de “terrorista”, e vice-versa.

Texto publicado na Folha de S. Paulo em 18/01/2013. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um filme – Últimos dias, Gus Van Sant.

Um filme simpático – Somos tão jovens, Antonio Carlos da Fontoura.

Um filme fraco – Dois dias em Nova York, Julie Delpy.

Um disco – The haunted man, Bat for Lashes.

Uma reportagem – Michael Specter sobre Bactérias na Piauí.

Pai, filho, um avião em pane e por que alguém vai parar no Xingu

Trecho de Nove noites, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 171 págs.):

“A ideia era irmos até a Tracajá e de lá até Goiânia, onde deixaríamos o mecânico e seguiríamos de volta para São Paulo. Mas meu pai logo avisou que, ao contrário do planejado, desceríamos na Suiá Miçu, uma fazena gigantesca, um verdadeiro mundo, na época sob o controle acionário do Vaticano, segundo o que diziam, a meio caminho entre o Xingu e o rio das Mortes. Perguntei ao meu pai o que era aquele barulho de uma coisa estalando na cauda do avião. Ele disse que devia ter batido contra um pássaro qualquer e me mandou calar a boca. Não se falou mais durante a viagem. Só ao nos aproximarmos da Suiá Miçu, quando a pista, talvez a melhor da região, já aparecia na distância, foi que meu pai se virou para o mecânico e para mim e anunciou que ia desligar os motores para que o combustível ficasse nos tanques na ponta das asas. Pediu que não nos preocupássemos. Recomendou ao mecânico que abrisse a porta antes de o avião tocar o solo e disse que, assim que batêssemos no chão, nós dois devíamos nos atirar, porque o avião poderia explodir. Larguei o gibi e arregalei os olhos. Eu ainda não sabia o que tinha acontecido. Ao sair da Santa Cecília, quando tentava decolar, meu pai fez uma barbeiragem. Contava desembaçar o para-brisa e não percebeu que tinha saído da pista e entrado na floresta. (…) Já estava com o trem de pouso avariado (…). Os fios das antenas de rádio foram cortados pelas copas das árvores. O barulho na cauda do avião era dos fios que batiam ao vento (…). Agora, o bimotor descia planando, com os motores desligados e o bico levantado. Não me lembro se o mecânico abriu ainda no ar a porta sobre a asa. Eu estava em pânico. O avião bateu de barriga no chão, já que o trem de pouso estava solto. A asa esquerda foi arrancada com o impacto, e acabamos entrando de bico num barranco de terra do lado esquerdo da pista. Ninguém se jogou. Ninguém se machucou O mecânico desceu. Eu desci com as pernas bambas. Só quando já estava no chão é que comecei a chorar e a gritar, numa crise histérica, pedindo ao meu pai que saísse do avião (…). Na minha lembrança, ele saiu de lá sorrindo. Era um sorriso amarelo, talvez de alívio, talvez para encobrir o medo. Logo chegaram os carros do administrador da fazenda, que, depois de constatar que ninguém tinha se machucado, nos convidou para almoçar, me deu um calmante e mandou um dos empregados nos levar até um povoado próximo, onde poderíamos pegar um táxi aéreo. Levamos umas quatro horas, se não mais, por uma estrada de terra, e o único avião disponível no pequeno campo de pouso era um fatídico Bonanza, com sua cauda em V, reputado pela falta de estabilidade. Nunca vomitei tanto como naquela viagem até Goiânia, onde dormi por vinte e quatro horas ininterruptas, graças em parte ao efeito do calmante (…). No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um avião da Varig que se incendiara misteriosamente na rota de descida para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à exceção de um (…). De alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente, como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice incrível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: ‘Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empurrados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou.’”

Fim de semana

Um livro – Them, Jon Ronson (Simon & Schuster, 336 págs.).

Uma reestreia – Laranja mecânica.

Uma trilha sonora – Searching for sugar man.

Uma mostra de fotos – Coleção Itaú, Tomie Ohtake.

Um chef – Piero.