Hervé Guibert (1955-1991) em seu relato autobiográfico Para o amigo que não me salvou a vida, de 1990 (José Olímpio, 142 págs., tradução de Mariza Campos da Paz):
“Eu odiava este Thomas Bernhard, ele era inegavelmente bem melhor escritor que eu, mas não passava de um enchedor de linguiça, um enrolador, um masturbador intelectual, um fazedor de obviedades silogísticas, um virgem tuberculoso, um tergiversador enganador (…), um contador de vantagens que fazia tudo melhor que todo mundo, andar de bicicleta, livros, pregar pregos, tocar violino, canto, filosofia e uma raiva limitadora, um urso mal-humorado cheio de tiques à força de dar sempre as mesmas patadas, com sua gorda pata pesada, pata teimosa de babaca holandês, sobre as mesmas quimeras, seu país natal e seus patriotas, os nazistas e os socialistas, as freiras, gente de teatro, todos os outros escritores e especialmente os bons, assim como os críticos literários que incensassem ou desprezassem os seus livros, sim, um pobre Dom Quixote imbuído de si mesmo, esse miserável vienense traidor em todos os sentidos, que nunca acabava de proclamar sua genialidade ao longo de seus livros, que não passavam de coisinhas insignificantes, de ideiazinhas, de rancorezinhos, de imagenzinhas, de impotenciazinhas sobre as quais esse mau violinista enrolava e enchia linguiça em duzentas páginas, sem se mover o mínimo sobre o fragmento que tinha se proposto a polir, com sua inigualável grandeza, até o clarão final ou o apagamento (…), prendendo a atenção do leitor com as repetições de sua mesmice obsessiva, trabalhando os nervos deles com pequenos golpes de arco tão exasperantes como um disco com um sulco arranhado (…). Tinha tido a imprudência, por minha vez, de entrar num jogo de xadrez renhido com Thomas Bernhard. A metástase bernhardiana, semelhante à progressão do vírus HIV que destrói no interior do meu sangue os linfócitos, fazendo desmoronar minhas defesas imunológicas, meus T4, diga-se de passagem no desvio de uma frase (…), a 12 de janeiro o doutor Chandi me revelou pelo telefone que a taxa deles tinha caído para 291 (…), o que dá margem a pensar que depois de um mês (…) minha taxa não passará de (…) 213, me colocando assim (…) fora da possibilidade da experiência da vacina de Mockney e de seu eventual milagre, e beirando o limite catastrófico que deveria ser recuado pela absorção do AZT se eu o preferir à Digitalina (…), e se ainda por cima o meu corpo tolerar essa quimioterapia (…) a metástase bernhardiana se propagou à velocidade com V maiúsculo nos meus tecidos e nos meus reflexos vitais da escrita, ela a fagocita, a absorve, cativa-a, destrói toda a sua naturalidade e personalidade para estender sobre ela sua dominação devastadora. Assim como tenho ainda a esperança (…) de receber em mim a vacina Mockney, que me livrará do vírus HIV (…), espero com impaciência a vacina literária que me livrará do sortilégio que me infligi de propósito por intermédio de Thomas Bernhard, transformando a observação e admiração de sua escrita (…) em motivo de paródia (…), escrevendo assim um livro essencialmente bernhardiano (…), realizando pela trucagem de uma ficção imitativa uma espécie de ensaio sobre Thomas Bernhard, com o qual de fato quis rivalizar, quis pegar pelo alto e superar na sua própria monstruosidade, como ele próprio fez ensaios falsos disfarçados sobre Glenn Gould, Mendelssohn-Bertholdy, ou, acho, Tintoretto, e como ao contrário do seu personagem Wertheimer, que renunciou a se tornar um virtuose do piano no dia em que ouviu Glenn Gould tocar as Variações Goldberg, eu não baixei os braços diante da compreensão do gênio, ao contrário, me rebelei diante da virtuosidade de Thomas Bernhard, e eu, pobre Guibert, entrava no jogo para valer, polia minhas armas para igualar um mestre contemporâneo, eu pobre pequeno Guibert, ex-senhor do mundo que havia encontrado algo mais forte que ele na Aids e em Thomas Bernhard.”
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