Uma das marcas da prosa de Jorge Luis Borges é o humor dúbio, um tom que sugere ao mesmo tempo fascínio e enfado pela erudição obsessiva de seus personagens, o excesso de referências inúteis e conhecimentos que se esgotam em si mesmos, como a memória de Funes ou a tarefa de refazer Dom Quixote que consome Pierre Menard.
Há algo desse tom em 2666, de Roberto Bolaño, mas ele está menos a serviço do humor – em muitos trechos está, também – do que de uma ideia um tanto trágica: a de que nem todos os livros e nem todo o esforço de civilização contido neles é capaz de eliminar o horror da existência – as guerras, o crime, a opressão. Escrever 856 páginas em cima de um pressuposto que tão facilmente poderia cair na solenidade, na pretensão e no vazio não é um risco pequeno, e à medida que o livro avança – com seus cinco longos capítulos que vão se comunicar apenas no desfecho, e a trama abrindo flancos em todas as direções – a aposta só aumenta.
Bolaño é da família dos escritores de fôlego. Numa classificação grosseira, que comporta muitos argumentos contrários, dá para dizer que nela existem os que exercem esse talento de forma horizontal – exemplo: Gabriel García Márquez –, ou seja, no encadeamento de histórias que se estende até o infinito. E existem os verticais – exemplo: David Foster Wallace –, cujo virtuosismo se concentra na observação psicológica e/ou na linguagem – modulações de voz, extensão vocabular, experiências de forma. No primeiro caso, o convencimento do leitor se dá primordialmente por ambientação externa, diálogos, coisas que aconteceram desta maneira ou daquela. No segundo, pela construção interior dos tipos, personagens cuja essência é a forma como falam ou pensam, e não o que fazem ou deixam de fazer.
2666 é mais da primeira escola que da segunda. Sua característica principal é a fabulação que entrelaça sentidos de forma alusiva, num enredo que cobre meio século, diversos países e dezenas de personagens, de generais a escritores, de políticos a jornalistas, de baronesas a prostitutas. Bolaño pula da grande história para a intriga amorosa, das discussões políticas para o enredo policial, e a impressão é que este movimento constante é mais decisivo para as intenções estéticas do romance do que a sorte dos personagens em si.
Mas há traços de verticalidade também: em alguns momentos as peripécias como que ficam suspensas, e a linguagem quebra a transparência fluida com que se apresenta a maior parte do tempo, num ecletismo capaz de reproduzir tanto uma ênfase lírica e/ou emocional – em trechos que falam de solidão, sonhos, crenças, sexo, amor e morte – quanto a neutralidade que pontua o reiterado e atordoante capítulo sobre mulheres assassinadas numa cidade do México.
Tenho dúvidas se o sucesso de público do livro, inclusive nos Estados Unidos, se deve a essa construção um tanto complexa de soluções literárias ou a uma certa mitologia em torno da figura do autor – um ex-preso político e eterno exilado latino-americano que morreu relativamente jovem, pobre e desconhecido. Só que isso pouco importa na experiência individual do leitor, sua relação única com um livro único que, ao final, todas as suas partes somadas – e as melhores, não por acaso, são a primeira e a última –, emerge como triunfo raro da ficção contemporânea.
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