Michel Laub

Mês: julho, 2010

Fim de semana

Um livroCachalote, Daniel Galera e Rafael Coutinho (Companhia das Letras, 280 págs.).

Um filmeÀ prova de morte, Quentin Tarantino.

Uma exposição – Rubens e gravuristas do seu ateliê, Caixa Cultural Paulista.

Um conforto no Chi fu – Macarrão frito com carne.

Um consolo em Porto Alegre – Xis coração.

Um discoTourist history, Two door cinema club.

Tweets/links

(@michellaub):

– Uma ilustração para cada página de Moby-Dick: http://tinyurl.com/yajkgzu

– Oliver Sacks e o método para aprender a ler depois de um AVC: http://n.pr/bSNQwp. Via @chrisriera e @ElectricLit

– Luiz Schwarcz sobre Paulo Francis [http://tinyurl.com/38u52k8], Susan Sontag [http://tinyurl.com/32amkb8] e Rubem Fonseca [http://tinyurl.com/35ffdbe]

– Jeremy Irons lê Lolitahttp://tinyurl.com/2bh2cc4. Via @LordAss

– Fotos de Brasília, época da inauguração, por Marcel Gautherot, Peter Scheier e Thomas Farkas: http://tinyurl.com/y73d9xe

– 44 fotos de São Paulo, anos 1940, por Hildegard Rosenthal:http://tinyurl.com/37kmwv9

– Fotos de lugares abandonados: http://tinyurl.com/lv6ujv. Via @ricardolombardi

Tweets/links

(@michellaub):

– Melhor matéria sobre a Coreia do Norte (é de 2003, mas deve valer ainda): http://tinyurl.com/26tm7oz

– Matéria clássica sobre montanhas-russas (para assinantes da New Yorker): http://tinyurl.com/25j8vay

– Matéria clássica sobre escritores que não conseguem mais escrever: http://tinyurl.com/26jdaaw.

Junta-cadáveres (Felipe Melo) e outras sugestões de livros para os jogadores da seleção, por @almirdefreitas: http://tinyurl.com/38ohcyr

– Todo ano alguém mata o romance americano, europeu, paraguaio, mas enfim: http://migre.me/UeP7

– Toni Judt sobre intelectuais e poder: http://tinyurl.com/33xfse3.

– Leões, raios, enforcamento: modos de uma girafa morrer [é tudo tão triste]. http://tinyurl.com/3aery2j

Os óculos

Meu pai, de Ferreira Gullar (em Muitas vozes, José Olympio, 118 págs.):

.

meu pai foi

ao Rio se tratar de

um câncer (que

o mataria) mas

perdeu os óculos

na viagem

.

quando lhe levei

os óculos novos

comprados na Ótica

Fluminense ele

examinou o estojo com

o nome da loja dobrou

a nota de compra guardou-a

no bolso e falou:

quero ver

agora qual é o

sacana que vai dizer

que eu nunca estive

no Rio de Janeiro

Fim de semana

Um livroPortrait of an addict as a young man, Bill Clegg (Little, Brown, 228 págs.).

Um discoIt’s frightening, White rabbits.

Outro discoSea of cowards, The death weather.

Uma exposição saindo de cartaz no Rio – Brasília 50 anos, IMS.

Um lançamento em DVDTragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, Sam Pekinpah.

Dez pontos altos da história do rock

Textos tirados do Pequeno livro do rock (Conrad, 224 págs.), de Hervé Bourhis. Com os desenhos fica melhor, claro:

1957 – [Frank Sinatra]: “O rock’n Roll é a forma de expressão mais brutal, pervertida e repugnante, maliciosa, devassa (…). Um afrodisíaco de odor nauseante (…). A trilha sonora de todo delinquente da superfície da Terra”.

1958 – Furioso por abrir o show de Chuck Berry, Jerry Lee Lewis coloca fogo no piano (…). “Quero ver você tocar agora, negro”, fala ao deixar o palco.

1965 – Na casa de shows La Locomotive, Vince Taylor arruína seu comeback apresentando-se como o profeta Mateus e tentando evangelizar o público. Depois, ele quebra todos os instrumentos sobre o palco.

1970 – [Elvis para Nixon na Casa Branca]: “Senhor, acredito que o FBI deveria me contratar como agente (…). O showbiz está cheio de hippies e drogados. Eu poderia servir como informante (….).Posso ajudá-lo a limpar este país (…). E eu também sei lutar karatê.”

1977 – Stiv Bators, o elegante vocalista dos Dead Boys, recebe sexo oral no palco e depois tenta se enforcar com o próprio cinto.

1978 – “Sua encantadora noiva, Nancy Spunger.”

1979 – Lee Perry é acusado de ter colocado fogo em seu próprio estúdio.

1985 – “O cativante Shane MacGowan” (aqui).

1999 – O guitarrista Buckethead é contratado [pelo Guns N’Roses]. Ele pede que um galinheiro seja instalado no estúdio.

2003 – Rendez-vou with anus, I got erection, Rock against ass. Os escandinavos do Turbonegro sempre foram muito sutis.

Um mendigo cego mastigando alguma coisa no Marrocos

Elias Canneti no livro de viagem As vozes de Marrakech (Cosacnaify, 111 págs., tradução de Samuel Titan Jr.):

“Me chamou a atenção um velho de cabelos brancos, sozinho, as pernas um pouco arqueadas. Estava de cabeça baixa e mastigava alguma coisa. Também era cego e, a julgar pelos trapos que vestia, era mendigo (…). Mas o rosto era cheio e viçoso, os lábios eram saudáveis e úmidos. Mastigava devagar, de boca fechada, e seu rosto tinha uma expressão de alegria. Mastigava com zelo, como se agisse conforme prescrições. Logo se via que estava gostando muito, e, observando-o, notei sua saliva, que era abundante (…).  Havia muito espaço livre em torno do velho, o que me pareceu estranho num lugar tão movimentado (…). Decidi ficar para ver o que aconteceria quando ele tivesse acabado.

Demorou muito, nunca vira um homem mastigar com tanto gosto e minúcia. Notei que minha própria boca se mexia de leve, muito embora não tivesse nada que mastigar. Senti uma espécie de respeito diante de um prazer mais notável que tudo o que eu já vira (…). Sua cegueira não me despertara compaixão. Ele parecia composto e satisfeito. Não se interrompeu nenhuma vez, nem mesmo para mendigar, como faziam o outro. Talvez tivesse o que queria. Talvez não precisasse de mais nada.

Quando terminou, lambeu os lábios algumas vezes, estendeu para a frente o braço direito com os dedos esticados e lançou sua súplica de mendigo com voz feliz. Um tanto acanhado, fui até ele e pus uma moeda de vinte francos na sua mão. Os dedos continuaram esticados, não podia mesmo dobrá-los. Levantou a mão vagarosamente e levou-a à boca (…).

Fiquei pasmo e confuso. Perguntava-me se não estava enganado. Talvez a moeda tivesse sumido de outro modo, sem que eu notasse. Tornei a esperar. Depois que ele mastigou com o mesmo gosto até se fartar, a moeda apareceu entre seus lábios. Cuspiu-a, coberta de muita saliva, na mão direita levantada. Então meteu a moeda numa bolsa que trazia pendurada do lado esquerdo.”

Feriado

Uma exposição no Masp – Evandro Carlos Jardim.

Outra exposição no Masp – Xico Stockinger.

Um filmeO profeta, Jacques Audiard.

Um clipe recém-lançadoCalling all bands, Júpiter Maçã (aqui).

Um livro de quadrinhos – O pequeno livro do rock, Hervé Bourhis (Conrad, 224 págs.).

‘2666’, de Roberto Bolaño: trechos (2)

Exemplos de ênfase e/ou lirismo (ver posts anteriores):

“Um tinha a casa, ideias e dinheiro, o outro tinha a lenda, os versos e o fervor dos incondicionais, um fervor canino, de cachorros surrados a pau que caminharam toda a noite ou toda a juventude debaixo da chuva, o infinito temporal de caspa da Espanha, e que por fim encontraram um lugar onde enfiar a cabeça, ainda que esse lugar seja uma lata de água putrefata, com um ar ligeiramente familiar.” 

“Mais um dos milhares de alemães velhos e solteiros. Como a máquina solteira. Como o celibatário que envelhece de repente ou como o celibatário que ao voltar de uma viagem na velocidade da luz encontra os outros celibatários envelhecidos ou transformados em estátuas de sal. Milhares, centenas de milhares de máquinas solteiras cruzando diariamente um mar amniótico, pela Alitalia, comendo spaghetti al pomodoro e tomando chianti ou licor de maçã, com os olhos semicerrados e a certeza de que o paraíso dos aposentados não fica na Itália (e portanto não pode estar em nenhum lugar da Europa), e voando para os aeroportos caóticos da África ou da América, onde jazem os elefantes. Os grandes cemitérios na velocidade da luz.”

“Na prosa de Lonko Kilapán não só cabiam todos os estilos do Chile mas também todas as tendências políticas, dos conservadores aos comunistas, dos novos liberais aos velhos sobreviventes do MIR. Kilapán era o luxo do castelhano falado e escrito no Chile, em seus fraseados aparecia não só o nariz apergaminhado do abade Molina, mas também as carnificinas de Patrício Lynch, os intermináveis naufrágios da Esmeralda, o deserto do Atacama e as vacas pastando, as bolsas Guggenheim, os políticos socialistas elogiando a política econômica da ditadura militar, as esquinas onde se vendiam sopaipillas fritas, o mote com huesillos, o fantasma do muro de Berlim que ondulava nas imóveis bandeiras vermelhas, os maus-tratos familiares, as putas de bom coração, as casas baratas, o que no Chile chamavam de ressentimento e que Amalfitano chamava de loucura.”

‘2666’, de Roberto Bolaño: trechos (1)

Exemplo de enfado (ver post anterior):

“Do jantar saíram várias propostas e uma suspeita. As propostas eram: dar uma palestra na universidade sobre literatura espanhola contemporânea (Espinoza), dar uma palestra sobre literatura francesa contemporânea (Pelletier), dar uma palestra sobre literatura inglesa contemporânea (Norton), dar uma aula magistral sobre Benno Von Archimboldi e a literatura alemã do pós-guerra (Espinoza, Pelletier e Norton), participar de um colóquio sobre as relações econômicas e culturais entre Europa e México (Espinoza, Pelletier e Norton, mais o diretor Guerra e dois professores de economia da universidade), visitar os contrafortes da Sierra Madre e finalmente participar de um churrasco de carneiro num rancho próximo a Santa Teresa, churrasco esse que prometia ser concorridíssimo, com a presença de muitos professores, numa paisagem, segundo Guerra, de singular beleza (…).”

Exemplo de neutralidade:

“Duas semanas depois, em maio de 1994, foi sequestrada Mónica Duran Reyes ao sair da escola Diego Rivera, na colônia Lomas Del Toro. Tinha doze anos e (…) aquele era seu primeiro ano de secundário. Tanto a mãe quanto o pai trabalhavam na maquiladora Maderas de México, que fazia móveis de estilo colonial e rústico exportados para os Estados Unidos e o Canadá. Tinha uma irmã mais moça, que estudava, e dois irmãos mais velhos, uma moça de dezesseis que trabalhava numa maquiladora especializada em cabos e um rapaz de quinze anos que trabalhava com os pais na Maderas de México. O corpo apareceu dois dias depois do seqüestro, no acostamento da rodovia Santa Teresa-Pueblo Azul. Estava vestida e tinha a seu lado uma a pasta com os livros e cadernos. Segundo o exame patológico havia sido estuprada e estrangulada. Na investigação posterior algumas amigas disseram ter visto Mónica entrar num carro preto, com filme nos vidros, talvez um Peregrino, um MasterRoad ou um Silencioso.”

‘2666’, de Roberto Bolaño

Uma das marcas da prosa de Jorge Luis Borges é o humor dúbio, um tom que sugere ao mesmo tempo fascínio e enfado pela erudição obsessiva de seus personagens, o excesso de referências inúteis e conhecimentos que se esgotam em si mesmos, como a memória de Funes ou a tarefa de refazer Dom Quixote que consome Pierre Menard.

Há algo desse tom em 2666, de Roberto Bolaño, mas ele está menos a serviço do humor – em muitos trechos está, também – do que de uma ideia um tanto  trágica: a de que nem todos os livros e nem todo o esforço de civilização contido neles é capaz de eliminar o horror da existência – as guerras, o crime, a opressão. Escrever 856 páginas em cima de um pressuposto que tão facilmente poderia cair na solenidade, na pretensão e no vazio não é um risco pequeno, e à medida que o livro avança – com seus cinco longos capítulos que vão se comunicar apenas no desfecho, e a trama abrindo flancos em todas as direções – a aposta só aumenta.

Bolaño é da família dos escritores de fôlego. Numa classificação grosseira, que comporta muitos argumentos contrários, dá para dizer que nela existem os que exercem esse talento de forma horizontal – exemplo: Gabriel García Márquez –, ou seja, no encadeamento de histórias que se estende até o infinito. E existem os verticais – exemplo: David Foster Wallace –, cujo virtuosismo se concentra na observação psicológica e/ou na linguagem – modulações de voz, extensão vocabular, experiências de forma. No primeiro caso, o convencimento do leitor se dá primordialmente por ambientação externa, diálogos, coisas que aconteceram desta maneira ou daquela. No segundo, pela construção interior dos tipos, personagens cuja essência é a forma como falam ou pensam, e não o que fazem ou deixam de fazer.

2666 é mais da primeira escola que da segunda. Sua característica principal é a fabulação que entrelaça sentidos de forma alusiva, num enredo que cobre meio século, diversos países e dezenas de personagens, de generais a escritores, de políticos a jornalistas, de baronesas a prostitutas. Bolaño pula da grande história para a intriga amorosa, das discussões políticas para o enredo policial, e a impressão é que este movimento constante é mais decisivo para as intenções estéticas do romance do que a sorte dos personagens em si.

Mas há traços de verticalidade também: em alguns momentos as peripécias como que ficam suspensas, e a linguagem quebra a transparência fluida com que se apresenta a maior parte do tempo, num ecletismo capaz de reproduzir tanto uma ênfase lírica e/ou emocional – em trechos que falam de solidão, sonhos, crenças, sexo, amor e morte – quanto a neutralidade que pontua o reiterado e atordoante capítulo sobre mulheres assassinadas numa cidade do México.

Tenho dúvidas se o sucesso de público do livro, inclusive nos Estados Unidos, se deve a essa construção um tanto complexa de soluções literárias ou a uma certa mitologia em torno da figura do autor – um ex-preso político e eterno exilado latino-americano que morreu relativamente jovem, pobre e desconhecido. Só que isso pouco importa na experiência individual do leitor, sua relação única com um livro único que, ao final, todas as suas partes somadas – e as melhores, não por acaso, são a primeira e a última –, emerge como triunfo raro da ficção contemporânea.

Fim de semana

Um romance2666, Roberto Bolaño (Companhia das Letras, 856 págs.).

Um depoimento – André Conti e o livro mais difícil do mundo (aqui).

Um discoWho killed Sgt. Pepper, Brian Jonestown Massacre.

Outro discoHigh violet, The National.

Um lugar para tomar sopa trovão em Porto Alegre – You-Yi.

Um filme para rever sempreOs vivos e os mortos, John Huston.