Retrospectiva do futuro
Ricardo Aleixo em Queridos Dias Difíceis, 2014 – “Queridos dias difíceis,/ acho que já deu – embora// eu considere prematuro/ um definitivo adeus.// Querendo, voltem. Minha/ casa é de vocês. Agora,// pensem bem se será mesmo/ saudável nos testarmos em// novos convívios tão longos/ (também não sou fácil) como// foi desta vez. Menos mal se/ vierem em grupos – tantos,// em tais e tais períodos do mês./ Topam correr o risco? Vão resistir// até o fim? Podem vir, eu insisto./ Mas contem primeiro até três.”
Ana Martins Marques em O Livro das Semelhanças, 2015 – “Há estes dias em que pressentimos na casa/ a ruina da casa/ e no corpo/ a morte do corpo/ e no amor/ o fim do amor/ estes dias/ em que tomar o ônibus é no entanto perdê-lo/ e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde/ não são coisas que se expliquem/ apenas são dias em que de repente sabemos/ o que sempre soubemos e todos sabem/ que a madeira é apenas o que vem logo antes/ da cinza”
Bruna Beber em Barragem, 2009 – “deve ser perigoso/ este gosto recorrente/ de incêndio na boca// mas não há saliva pra apagar/ e não há saliva que apague/ por isso falo pouco// não sei o que de fato queima/ fecho a boca e o fogo sai/ pelo nariz// respiro mal, meu ar é qualquer fumaça/ queria um gosto bom, queria pernas/ pra sair correndo.”
Julia de Souza em Aquele Furo, 2019 – “Aquela bandeira/ cravada na esfera/ perfurando o tempo/ ultrapassando antes/ da hora o século/ aquela bandeira/ aquela bandeira ainda/ aquela tela estrelada/ aquela nação/ o que diria/ aquela bandeira/ aquela bandeira ainda/ o que diria ela/ sobre a própria sombra/ sobre a duração?”
Daniel Pellizzari em A Fome é uma Coisa Molhada”, 2018 – “Existe alguma dignidade em ser o último, ou pelo menos alguma tristeza, e toda tristeza é digna. Mas não cheguei até aqui pra só chegar até aqui. Nasci cabrita e depois ganhei pênis, mas perdi esse privilégio. Sou fancha e branca, sou pobre e humana, sou negra e rica, sou hétero e cabra. Acho que sou judia também, e assexual, e ambidestra, e cigana e inseto. Eu sou escrota. Meu porão é uma arca morta. Eu sou maravilhosa (…). Ontem a gente vai cruzar o parque. Em frente.”
Trechos de coletânea com trechos inspiradores (dependendo do ponto de vista) para 2020, publicada no Valor. Íntegra aqui.