Michel Laub

Mês: abril, 2012

Feriado

Um livro – O imperador de todos os males, Siddhartha Mukherjee (Companhia das Letras, 634 págs.).

Um disco – Blunderbuss, Jack White.

Um filme ok – Diário de um jornalista bêbado, Bruce Robinson.

Uma rabada – Pomodori.

Uma sangria – Venga.

Links

– Ian McEwan sobre Darwin, Einstein, originalidade e literatura: http://goo.gl/CcQle

– Conversa entre Richard Dawkins e Lawrence Krauss: http://goo.gl/husxi, via @torturra

– As menores e maiores coisas do universo: http://www.htwins.net/scale2/, via @ladilait

– Entrevista com Jeffrey Wingand (Russell Crowe em O informante): http://goo.gl/1SdQ6

– Entrevista com Munha da 7 (Satanique Samba Trio): http://goo.gl/9989h

– Autorretratos de Cartier-Bresson, Warhol, Diane Arbus, Mapplethorpe: http://goo.gl/Y6Gxb, via @daniarrais @azaroseuquerida

– Pasolini entrevista Ezra Pound: http://goo.gl/tGHhS, via Ricardo Aleixo/@jocaterron

– Por que não terminar livros (bons ou ruins): http://goo.gl/RSnht

– Tropicália, indústria cultural e o documentário de Marcelo Machado, por @biawabramo: http://goo.gl/eilyg

– Gravações/vídeos com as vozes de Freud, V.Woolf, E.Waugh, Tolkien. R.Graves e Keynes: http://goo.gl/ouh8q, via @xroeder

Fim de semana

Um disco – Break it yourself, Andrew Bird.

Um livro de entrevistas – Carlos Drummond de Andrade (Azougue, 232 págs.).

Uma reportagem – O homem que fez transplante de rosto, Piauí.

Um segundo andar – Chi fu.

Um filme – Pina, Wim Wenders.

Egopress

1) Diário da queda ganhou o Prêmio Brasília de Literatura na categoria romance. Aqui, mais detalhes. Aqui, entrevistas/matérias/resenhas sobre o livro.

2) Agenda das próximas semanas: Bienal do Amazonas (Manaus, 29/4, 17h), Feira do Livro de Guarulhos (6/5, 16h30), Feira do Livro do colégio Miguel de Cervantes (São Paulo, 19/5, 10h).

Fim de semana

Um show – Thurston Moore + Kurt Vile.

Um filme – Xingu, Cao Hamburguer.

Outro filme – Dinner rush, Bob Giraldi.

Um lugar para tomar vacina – Instituto Pasteur.

Um livro – Cães Herois, Mario Bellatin (Cosac Naify, 128 págs.).

Notas sobre tradução, por Ricardo Piglia

Trechos de palestra feita pelo autor no aniversário da Companhia das Letras, em 2011, e publicados na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica, que ajudei a editar (PDF aqui).

1) Sempre me chamou atenção um comentário de Virginia Woolf, a escritora inglesa, que se surpreen­dia porque seus amigos escritores diziam de maneira unânime que o melhor romance que haviam lido era Guerra e Paz. Mas, dizia Virginia, todos liam traduções. Me parece que há algo mais do que linguagem na narração. A narração não é como a poesia em sentido pleno, parece que transmite algo que podemos chamar de seus sentimentos, emoções, algo que cada um de nós definirá, que lhe per­mite sobreviver às traduções ainda que essas não sejam excelentes.

2) A figura do leitor e a figura do tradutor, que estão em certo sentido como fantas­mas na ori­gem do romance, são parte essencial do que todos consideramos o primeiro romance, Dom Quixote. Um romance rapidamente traduzi­do, um dos primeiros acontecimentos da literatura clássica a chegar a lugares muito diversos. A primei­ra tradução para o inglês é de 1612. A tradução em francês, de 1614. Para o italia­no, de 1622. Para o alemão, de 1621. Quase imediatamente, nos cinco ou seis anos posteriores, o li­vro já começou a circular em todas as línguas. A mais extraordinária é a tradução para o chinês, de um escritor que se chama Lin Shu e seu ajudante, Chen Jialin. Shu não conhecia nenhuma língua estrangeira e seu ajudante todas as tardes lhe contava um episódio de Dom Quixote, que ele traduzia a partir do relato. O romance se chamou His­tória de um cavaleiro louco e foi um grande êxito.  É um exemplo de como um livro consegue transmitir algo além de qualquer modificação implícita que possa ser imposta na tradução.

3) Basicamente, o que o tradutor tem de fazer é pegar os sentidos múltiplos que há em um texto e reduzi-los a um de seus sentidos, e isso sempre produz possíveis equívocos. A primeira coisa que ele faz é enviar perguntas ao escritor. Partes do texto que lhe parecem obscuras. Então o tradutor é o único que verdadeiramente lê o livro. Lê todas as palavras e tem de entender todas e estar seguro. As perguntas dos tra­dutores são sempre extraordinárias. “Escuta: no capítulo 12 tinha a porta fechada e no capítulo 18 está aber­ta”. Eu sempre digo a eles: “Passou alguém pela porta”. O tradutor é, antes de mais nada, um leitor muito cuidadoso do original.

4) Na luta contra o equívoco, o primeiro movimento do tradutor é confirmar que está entenden­do bem o texto. Não porque está escrito em outra língua, que seguramente conhece também como a língua para a qual está traduzindo, mas porque um texto de ficção sempre tem algum erro, um lugar onde a decisão sobre um sentido pode ser equivocada.

6) Por outro lado, muitas vezes os tradutores estabelecem com o texto uma rela­ção de conflito. Para mim, o exemplo mais claro é Borges, que fez uma tradução de Pal­meiras Selvagens. Borges luta contra William Faulkner porque não gosta do estilo barroco, de uma sintaxe muito aberta, onde os acontecimentos estão à sombra da presença do narrador que por um momento pare­ce que está louco ou bêbado. A primeira cena do romance é de alguém que está descendo uma escada com uma lâmpada numa noite de tormenta e a princípio não se sabe bem quem está descendo, se se trata de uma lâmpada, está tudo contado à maneira clássica de Faulkner. Borges ordena isso. Aí se vê algo que habitualmente não se vê numa tradução: a luta do estilo do tradutor contra o estilo do texto. Situações que o tradu­tor trataria de contar de outra maneira.

7) Seria muito bom que na história da literatura se incluísse a história das traduções. A primeira tradu­ção de Poe na França produz vários efeitos: em  Mallarmé, Paul Valéry, no próprio Baudelaire que a traduziu, na literatura policial. Essa tradução começou a gerar textos que se in­corporaram logo à tradição literária.

8) O antagônico à experiência da tradução de narrativa é a de poesia. Ela parece impossível de antemão. Alguém pode dizer que uma poesia realmente funciona quando está escrita na língua materna em que se lê. Tudo o que se lê fora da língua materna são versões que nem sem­pre se aproximam da eficácia verbal que tem o poema. Por isso, habitualmente os tradutores de poe­sia são os próprios poetas. E tanto é assim que os poetas incorporam os textos que traduzem como se fossem suas próprias obras. É muito comum em Octavio Paz. É muito comum em Haroldo de Campos. Em Emilio Pacheco no México.

9) Alguém pode dizer, falando ironicamente, que Quixote é o primeiro romance e Finnegans Wake, de Joyce, seria o último porque não se pode traduzi-lo. Joyce em certo sentido tomou a deci­são de es­crever um romance que não se pode traduzir, pois trabalha com a justaposição de todas as línguas que Joyce conhecia, que eram muitas, e portanto é um texto em que a linguagem adquiriu um caráter noturno, estão mescladas palavras de origem alemã, italia­na, inglesa, etc. A única tradução válida que existe é a que, a pedido de seu amigo Italo Svevo, Joy­ce fez do capítulo Ana Livia Plurabelle. Joyce, para traduzir seu próprio texto, em vez de trabalhar com todas as línguas europeias que estão presentes em Finnegans, usa todas as línguas implícitas na língua italciana.  Por um lado, como numa pequena história da língua italiana, vai vendo os mo­mentos em que essa língua parece estrangeira e, usando os dialetos que abundam na cultura italiana, faz uma tradução extraordinária. Consegue que distintos registros de uma língua funcionem como uma língua estrangeira. É uma tradução tão extraordinária que muitos a consideraram um texto tão importante quanto os de Dante.

10) Agora me ocorrem as situações em que os escritores traduzem a si mesmos, intervêm na tra­dução de seus próprios textos, e também os escritores que mudam de língua, como é o caso de Jo­seph Conrad, po­lonês que escrevia em inglês, e de Samuel Beckett, que passa a escrever em fran­cês. Por que passa a escre­ver em francês? Beckett tem dois argumentos: porque assim pode escrever mal, e o inglês é de Joy­ce. Há muitos outros. Nabokov, extraordinário estilista em inglês e, segundo dizem, extraordinário estilista na língua russa. Jerry Kozinski, escritor muito interes­sante, que está um pouco esquecido, mas que é muito bom, também começa a escrever em in­glês. Issac Bashevis Singer, grande escritor de origem judaico-polonesa, um dos últimos que escrevia em ídiche e alguns escritores amigos, como Saul Bellow, traduziam para o inglês.

11) Gostaria de falar de um escritor que nós, argentinos, admiramos muito: Witold Gomb­rowicz. Um autor que havia publicado um romance que é um dos grandes livros do século passado, Ferdydurke. Estava um dia sentado em um bar de Varsóvia e veio um amigo: “Vai ser inaugurada uma companhia que vai ao sul, a Buenos Aires, e na viagem inaugural há lugar para um jornalista”. Gombrowicz aceita a possibilidade de conhecer Buenos Aires e voltar no mesmo barco. Quando chega, três dias depois, começa a Segunda Guerra Mundial, a Polônia havia sido invadida pelos nazistas e ele fica completamente despossuído. De sua língua, de alguma possibilidade econômica, completamente na intempérie. Sobrevive e trabalha muito até que lentamente começa a reaparecer como uma figura que vive na Ar­gentina por anos, escreve lá parte de sua obra e, quando volta à Europa, consegue reconhe­cimento internacional,

12) Os anos de Gombrowicz na Argentina são uma alegoria tão estranha quanto a alegoria dos manuscritos salvos de Kafka. Após os primeiros meses dificílimos, dos quais não se sabe quase nada, entra aos poucos em circulação em Buenos Aires. Seu centro de operações era a Confeitaria Rex, em cima de um cinema na calle Corrientes, onde ganha um pouco de dinheiro jogando xadrez. Gombrowicz anuncia que é um escritor do nível de Thomas Mann, mas todo mundo pensa que é um farsante, ninguém o conhece. Além do mais, afirma que é um conde, que sua família é aristocrática, ainda que agora, pelas contingências do mundo, viva na pobreza mais estranha.

13) Em 1947, Gombrovich sai à superfície. Nesse ano, aparece a tradução para o castelhano de Ferdy­durke. É uma tradução extraordinária que Gombrowiz faz no Café Rex com a ajuda de Virgi­lio Piñe­ra, um grande escritor cubano que não sabe polonês, enquanto Gombrovich não sabe castelha­no. Com os dois falando em francês, é um pouco como a experiência chinesa, e cada um presente no bar intervém na discussão. É uma tradução abolutamente extraordinária, completamente onírica. É um dos gran­des acontecimentos da história da literatura essa tradução em um bar, que ter­mina quase inventando o livro.

14) Gombrowicz  aprende o castelhano em Retiro, nos bares do porto, com marinheiros e prostitutas. Seu espanhol está ligado a espaços secretos e a certas formas baixas da vida social. Numa conferência, critica a linguagem estereotipada da literatura e a sociabilidade implí­cita da linguagem falsamente cultivada. “Quando teremos uma linguagem para nossa ignorância?”, pergunta em seu diário. “Gos­taria de mandar todos os escritores ao estrangeiro, fora de seu próprio idioma e dos ornamentos e filigranas verbais, para ver o que acontecerá com eles”.

15) O escritor sempre fala numa língua estrangeira, dizia Proust, e sobre essa frase Deleuze cons­truiu sua admirável teoria da litera­tura menor preferida, a alemã de Kafka, um judeu tcheco que em sua casa fala tcheco, mas escreve em alemão. A posição de Gombrowicz é mais complicada: um ho­mem maduro que se vê obrigado a falar como uma criança. Em seu primeiro conto, Memória da maturidade, Gombrowicz se colocou nessa posição.

16) O castelhano é uma língua menor na circulação cultural do século 20. Quem sabe podemos dizer o mesmo do português. São línguas na posição Gombrowicz diante das línguas dominantes, o francês e o inglês, onde parece correr a literatura. São línguas que constroem sua grande tradição, mas nunca estão no centro da circulação literária.

17) Os livros percorrem grandes distâncias, e a tradução é uma máquina voadora. Há uma questão geográfica, de mapas e fronteiras, na circulação da literatura. Do polonês ao francês, passando pelo espanhol, a tra­dução é o espaço dos grandes intercâmbios e das circulações secretas.  Ao se traduzir textos para criar outro registro de leitura que se possa botar ao lado de obras muito institucionalizadas, a tradução intervém na própria literatura.

Páscoa

Uma exposição – Giacometti na Pinacoteca.

Um posfácio – Eduardo Bueno na edição de bolso de On the road (L&PM, 380 págs.).

Um filme médio – Um método perigoso, David Cronemberg.

Um disco médio – M.D.N.A., Madonna.

Um tailandês em Perdizes – Namga.

Um tailandês nos Jardins – Marakuthai.

O que vale a pena lembrar e saber

(Publicado no blog da Companhia das Letras):

Não é demérito para um livro ser lembrado apenas por um pequeno trecho. Na maioria das vezes, não fica nem isso. Sou incapaz de resumir a trama, as características dos personagens ou qualquer cena de romances que li e seriam considerados importantes sob um ponto de vista elevado, acadêmico. Ao mesmo tempo, guardo bem a passagem de Tuareg (Alberto Vásquez-Figueroa) que descreve uma mina de sal. E de O ônus da prova (Scott Turow), em que um advogado usa um orelhão para contatar os clientes. E de A noite do oráculo (Paul Auster), cujo narrador elogia o caráter de sua mulher a partir de uma teoria sobre roubo de material de escritório.

Tuareg, O ônus da prova e A noite do oráculo fazem parte de uma categoria pessoal de clássico – mais ligada aos sentimentos do leitor que à história geral da ficção. A lembrança simples de episódios e cenas, porém, obviamente não é uma prova de gosto. Muitas vezes um romance nos acompanha com o registro difuso de sua atmosfera, do prazer de ter contato com a erudição do autor (Doutor fausto, Thomas Mann), o fôlego (Os sete pilares da sabedoria, T.E. Lawrence), a ousadia (Ulysses, James Joyce), qualidades mais difíceis de serem verbalizadas que um enredo ou diálogo.

Como tudo em literatura, o gosto se alimenta de um repertório. Essa memória – leituras anteriores, conhecimento vindo de outras fontes, experiência em geral – permite que seja mais fácil perceber a relevância, a originalidade e a força de um texto novo. Mas não convém misturar o que são etapas distintas de um processo que só existe como soma: a exemplo da inteligência, que é uma articulação nova de informações anteriores, o gosto é o que vem depois que a base é mexida e reinventada. Aí entra um fator imponderável e um tanto esotérico, uma espécie de talento de leitor: a diferença entre conhecer muitos assuntos e ser capaz de pensar sobre eles.

Num livro simpático lançado em 2011 – A arte e a ciência de memorizar tudo, Ed. Nova Fronteira –, Joshua Foer mostra que até o mecanismo fisiológico da memória depende de um contexto histórico e cultural. Antes da invenção da imprensa, que popularizou os livros e guardou a produção intelectual da humanidade de forma mais efetiva, qualquer poeta sabia de cor seus versos. Não porque tivesse um QI maior que a média de hoje, mas porque sem essa habilidade o trabalho se perderia: “A externalização da memória não apenas mudou o modo como as pessoas pensam, também levou a uma profunda alteração do que significa ser inteligente”, diz Foer. Referindo-se a tipos como um inglês que decorou duas mil palavras estrangeiras num dia, ou um americano que listava a sequência de vinte e sete maços de cartas estudados em uma hora, ele completa: “O que antes era a pedra angular da cultura ocidental é agora, na melhor das hipóteses, uma curiosidade”.

Com a internet e os mecanismos de busca, a era de ouro dos “halterofilistas da mente” sofreu uma segunda morte. A pergunta é se o mesmo ocorreu com o conceito já adaptado de inteligência, e se o valor da memória pode estar sendo relativizado num grau que afeta sua essência. Assim como aconteceu com números de telefones, que sabíamos de cor até poucos anos atrás, é possível que guardar informações sobre livros vire um exercício (ainda mais) inútil. E que o caráter didático de um romance, que nos faz ler tanto pelas razões de estilo quanto para aprender sobre um determinado assunto, torne-se (ainda mais) redundante quando tudo está à disposição no Google. E que o excesso de testemunhos e interpretações sobre esse romance, dos quais talvez não possamos fugir diante de redes sociais (ainda mais) invasivas, nos impeça de apreciá-lo por meio de sentimentos inaugurais – o que é uma das maravilhas da leitura como a conhecemos.

Seja como for, são hipóteses de superfície. A necessidade de dar sentido e registrar emocionalmente o conhecimento não acabará, e a ideia de verticalidade – conseguir furar a superfície infinita dos dados e vozes da cultura – independe da forma como ambos chegam até nós. É um processo que será sempre individual, o referido talento que faz um leitor saber, de forma menos ou mais consciente, a informação que deve ser guardada ou descartada. O que vale a pena saber ou ignorar. Algo que Borges antecipa numa frase de Funes, o memorioso, conto clássico sobre o tema publicado em 1944: pensar também é – e talvez seja antes de tudo, e cada vez mais – esquecer.