Sobre oficinas literárias
1.
Há um romance de Agatha Christie, cujo nome não direi para não estragar a surpresa dos interessados, cuja história é contada pelo próprio assassino. Reli-o na quarentena, mais de três décadas depois de sofrer o impacto de seu desfecho pela primeira vez, e foi curioso voltar a algo tão decisivo na minha vida de leitor (e, logo, de escritor): a descoberta do narrador inconfiável.
Claro que Agatha Christie não inventou nada. É provável que ela conhecesse alguns dos mestres modernos no uso do expediente, como Henry James ou Ford Madox Ford (no Brasil, o grande exemplo ainda é o do Machado de “Dom Casmurro”). Mas não importa. Diluído ou não, o achado de reproduzir ficcionalmente o que parece uma obviedade do nosso dia-a-dia – a possibilidade de desconfiarmos de interlocutores – me abriu a porta para uma das riquezas da literatura: a de ampliar os sentidos do discurso, fazendo avançar inteligência e sensibilidade por meio da nuance, da ironia no sentido amplo do termo.
2.
Uma segunda descoberta de adolescência, igualmente óbvia, mas não tanto, surgiu na leitura de “O Cobrador”, de Rubem Fonseca: a força que a ficção ganha ao nos pôr na cabeça de personagens radicalmente diferentes de nós. Uma coisa é nos identificarmos com os tipos edificantes, mesmo em seu eventual anti-heroísmo, dos romances juvenis. Outra é ler uma história contada por um pistoleiro (“Encontro no Amazonas”), um pedófilo (“Pierrô da Caverna”), um estuprador (o conto título do livro).
As ações de criaturas assim nos causam repulsa, sem dúvida, mas existe um efeito ambíguo no modo como elas chegam a nós. O bom uso da primeira pessoa nos faz grudar na perspectiva de quem fala, o que nos obriga a acompanhar ativamente – se essa é a expressão certa – a lógica interna dessa psicologia. A ambivalência é como um teste para os nossos limites éticos, nosso pudor em ter contato com o que preferíamos não saber. Sendo otimista quanto a um possível papel social da ficção, que surge a partir da consciência individual de cada leitor, é como se o jogo de aderência e distância daquilo que é narrado fizesse avançar a compreensão que temos do mundo e de nós mesmos, nos tornando seres mais complexos – e, nos termos desse mesmo otimismo, seres melhores.
3.
A primeira pessoa é apenas um dos exemplos de como a técnica literária pode ser uma questão moral. É ingênuo separar a forma de um texto e os efeitos possíveis de sua recepção, acreditando na inspiração ignorante das ferramentas que a expressam na página. Felizmente, a maioria dos que começam a escrever hoje sabe que não vai a lugar nenhum sem conhecer a carpintaria do ofício. Esse aprendizado pode ser feito em anos de leitura solitária, mas há como apressar o processo.
Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 24/7/2020. Íntegra aqui.