O que está escondido em ‘Mad Men’
Trecho de um artigo que Enrique Vila-Matas publicou no El País em março (íntegra aqui):
“Ouvi [Matthew] Weiner [criador de Mad Men] dizer que era fascinado pela estrutura de Coração das Trevas, de Joseph Conrad, onde o narrador sai em busca de Kurtz, mas no caminho se envolve em incontáveis digressões, e, na realidade, essas digressões são (…) o relato em si. (…). Era aí que eu queria chegar: possivelmente o século XIX foi o dos ‘grandes romances’, e o XX, por outro lado, a era do fragmento, o reencontro do narrativo com sua essência, com o conto, com o relato breve.
Depois de tudo, muitos dos grandes romances do século XX são construídos com a lógica do fragmento, como se seu verdadeiro coração fosse o relato, algo que, obviamente, não é fácil de demonstrar, embora possa chegar a ser quando se atenta para o ditado daquela Tese sobre o conto em que Ricardo Piglia afirma que um relato sempre conta duas histórias. O conto, diz Piglia, é um relato que encerra um relato secreto, é construído para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto: reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. ‘A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não em uma longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato’, dizia Rimbaud.
A tese de Piglia me faz pensar que se a densa trajetória do romance do século XX contivesse alguma história secreta, esta giraria em torno da hábil camuflagem do texto breve, do fragmento, da unidade de conto no interior da alma central de seu grande labirinto. Conrad, Cheever, já citados aqui, junto a Nabokov, Walser, Kafka, Ballard, Philip K. Dick, Sebald, Beckett e outros, seriam então alguns dos praticantes mais brilhantes de uma grande simulação que consiste em reabilitar secretamente o conto sob a falsa aparência de estar criando romances, ou seja, situá-lo o em uma linha de continuidade com relação aos grandes romances do século XIX.
Uma grande simulação que se compreende melhor quando se aplica a tese das duas histórias de Piglia, onde se explica que a variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada, da história que vai por baixo da supostamente principal, o tema do relato (…). Nas cenas de Mad Men (…) fui lentamente entrando em contato com o modo de trabalhar de Weiner e vi que também ele operava ao modo borgiano, isto é, que a história que em Mad Men ia por baixo da supostamente principal – a história aparentemente secundária ou segundona da batalhadora Peggy Olsen (Elisabeth Moss) e suas colegas de escritório – era na realidade a trama secreta, o centro da narrativa, o eixo verdadeiro de tudo. E também percebia que, acontecesse o que acontecesse, no fundo da cena sempre estava Peggy (…), que ela era não só a trama secreta, mas também o gênero segredo oculto no próprio eixo da narrativa. Então Peggy é um conto? Acredito que sim, que ela é a trama secreta, mas também – porque essa trama está repleta de unidades de contos – o próprio gênero camuflado dentro da estrutura geral de romance, o verdadeiro gênero utilizado para a narrativa global posta em marcha por Weiner.”