Michel Laub

Mês: julho, 2015

O que está escondido em ‘Mad Men’

Trecho de um artigo que Enrique Vila-Matas publicou no El País em março (íntegra aqui):

“Ouvi [Matthew] Weiner [criador de Mad Men] dizer que era fascinado pela estrutura de Coração das Trevas, de Joseph Conrad, onde o narrador sai em busca de Kurtz, mas no caminho se envolve em incontáveis digressões, e, na realidade, essas digressões são (…) o relato em si. (…). Era aí que eu queria chegar: possivelmente o século XIX foi o dos ‘grandes romances’, e o XX, por outro lado, a era do fragmento, o reencontro do narrativo com sua essência, com o conto, com o relato breve.

Depois de tudo, muitos dos grandes romances do século XX são construídos com a lógica do fragmento, como se seu verdadeiro coração fosse o relato, algo que, obviamente, não é fácil de demonstrar, embora possa chegar a ser quando se atenta para o ditado daquela Tese sobre o conto em que Ricardo Piglia afirma que um relato sempre conta duas histórias. O conto, diz Piglia, é um relato que encerra um relato secreto, é construído para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto: reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. ‘A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não em uma longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato’, dizia Rimbaud.

A tese de Piglia me faz pensar que se a densa trajetória do romance do século XX contivesse alguma história secreta, esta giraria em torno da hábil camuflagem do texto breve, do fragmento, da unidade de conto no interior da alma central de seu grande labirinto. Conrad, Cheever, já citados aqui, junto a Nabokov, Walser, Kafka, Ballard, Philip K. Dick, Sebald, Beckett e outros, seriam então alguns dos praticantes mais brilhantes de uma grande simulação que consiste em reabilitar secretamente o conto sob a falsa aparência de estar criando romances, ou seja, situá-lo o em uma linha de continuidade com relação aos grandes romances do século XIX.

Uma grande simulação que se compreende melhor quando se aplica a tese das duas histórias de Piglia, onde se explica que a variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada, da história que vai por baixo da supostamente principal, o tema do relato (…). Nas cenas de Mad Men (…) fui lentamente entrando em contato com o modo de trabalhar de Weiner e vi que também ele operava ao modo borgiano, isto é, que a história que em Mad Men ia por baixo da supostamente principal – a história aparentemente secundária ou segundona da batalhadora Peggy Olsen (Elisabeth Moss) e suas colegas de escritório – era na realidade a trama secreta, o centro da narrativa, o eixo verdadeiro de tudo. E também percebia que, acontecesse o que acontecesse, no fundo da cena sempre estava Peggy (…), que ela era não só a trama secreta, mas também o gênero segredo oculto no próprio eixo da narrativa. Então Peggy é um conto? Acredito que sim, que ela é a trama secreta, mas também – porque essa trama está repleta de unidades de contos – o próprio gênero camuflado dentro da estrutura geral de romance, o verdadeiro gênero utilizado para a narrativa global posta em marcha por Weiner.”

Fim de semana

Uma edição – Ficção completa, Bruno Schultz (Cosac Naify, 544 págs.).

Um livro sobre música – As quarto estações, Mariano Marovatto (Cobogó, 88 págs.).

Um documentário sobre música – Desagradável, Fernando Rick (aqui).

Um disco – Star wars, Wilco.

Um vídeo – O debate cultural surf x jiu-jitsu no Rio dos 70 (aqui).

Sobre a escrita

Não existem regras para se escrever ficção. Ou melhor, não existem regras gerais. Cada autor encontrará as que são invioláveis no próprio caso, digam elas respeito a gramática, horários, quantidade de luz na escrivaninha, ruína financeira e conjugal.

A metodologia também se adapta ao tipo de literatura almejada. Em “Sobre a escrita”, livro de 2000 lançado há pouco no Brasil pela Suma das Letras (256 págs., tradução de Michel Teixeira), Stephen King fala da necessidade de ler muito e ter autocrítica, dicas vagas o bastante para não estragar a diversidade literária do mundo nem o entusiasmo de ninguém. Mas parte do que é dito no texto serve mesmo para quem quer seguir o modelo de… Stephen King.

É fundamental, portanto, identificar onde está a autoridade de quem publica tratados do gênero. A do autor de “Sobre a Escrita” é diversa das de Mario Vargas Llosa (“Cartas a um jovem romancista”), Francine Prose (“Para ler como um escritor”), James Wood (“Como funciona a ficção”) e tantos outros.

Trecho de texto publicado na Folha de S.Paulo, 17/7/2015. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um documentário sobre música – What Happened, Miss Simone?,  Liz Garbus.

Um livro sobre música – Memórias de um legionário, Dado Villa-Lobos (Mauadx, 256 págs.).

Um ensaio – Tage Rai sobre violência e moral (aqui)

Um obituário – Alejandro Chacoff sobre James Salter na Piauí.

Uma exposição em Brasília – León Ferrari, CCBB.

Os fins do arco-íris

No debate sobre discriminação, pregar a tolerância é o melhor caminho? Numa de suas provocações costumeiras, e citando o exemplo insuspeito de Martin Luther King, o filósofo esloveno Slavoj Zizek acredita que não. Segundo ele, a meta deveriam ser leis que concretamente protejam e emancipem grupos vitimados por religião, etnia, gênero e comportamento.

O problema seria mais de topo, digamos, do que de base. É um raciocínio atraente para a militância, pois dá a ela ferramentas e horizontes objetivos, em vez de limitar sua ação a apelos genéricos e cheios de coraçõezinhos na terra dos afetos de pelúcia.

Só que as coisas são mais complexas. Levado ao limite, e boas intenções à parte, o argumento ganha o sotaque autoritário que impõe condutas imunes a um dos preceitos da sociedade livre: o de que a lei surge do consenso (ou de um nível possível de consenso), e não o contrário (regras impostas de cima para baixo).

Melhor pensar que a democracia, sistema de maiorias feito também para proteger minorias, será mais saudável se cultivarmos valores – como a aceitação das diferenças – que tirem a noção de direito individual do campo formal/teórico. A história é triste e repetitiva ao mostrar que leis são inúteis quando não há prática social a sustentá-las.

Trecho de texto publicado na Folha de S.Paulo, 3/7/2015. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um filme – O cidadão do ano, Hans Petter Moland.

Outro – Enquanto somos jovens, Noah Baumbach.

Uma segunda temporada até aqui – True detective.

Um bibimpap – Mirim.

Um melhor (sempre) – Bueno.