Michel Laub

Mês: outubro, 2019

O máximo possível

Nos anos 1950, em São Paulo, numa das muitas jogadas para a torcida que seriam típicas de sua trajetória, o então prefeito Jânio Quadros considerou prioritário ressuscitar uma norma infame dos anos 1930: a que exigia de atores e atrizes uma certa carteira da Segurança Pública, emitida por autoridades para registrar e controlar prostitutas e outros tipos considerados perigosos.

Uma das profissionais que usaram o documento foi Fernanda Montenegro. O que torna a história ainda mais bizarra: nas memórias recém-lançadas da atriz (Prólogo, Ato, Epílogo, Companhia das Letras, 342 págs., em colaboração com Marta Góes), poucas coisas são tão louvadas quanto o sentimento comunitário, familiar, e sua consequente ética do trabalho.

Neta de imigrantes portugueses e italianos muito pobres, filha de um operário técnico especializado e uma dona de casa, Fernanda saiu dos subúrbios do Rio para o estrelato no teatro, no cinema e na TV sem jamais desmentir – na postura pública ou, atestam os que a conhecem, na privada – as bases dessa ética: “Sou pragmática, faço o que tiver que fazer (…). Se o resultado for bom, ótimo, se não for, segue a vida.”

A pertinência do livro começa por aí. Em cada linha se dissolve a ideia filistina, e tão típica de nossa época, de artistas como figuras preguiçosas penduradas em mamatas de governo, esteticismos tolos ou conspirações ideológicas/pervertidas. Em algum momento dos últimos anos a arte, de maneira torta, voltou a ser relevante nessa guerra cultural regressiva – com batalhas envolvendo nudez em museus, beijo gay em gibis e outros espantalhos.

Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 25/10/2019. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um disco – All Mirrors, Angel Olsen.

Um vídeo – Nando Reis sobre seus violões (aqui).

Um filme – A vida Invisível, Karim Ainouz.

Um filme de 2017 – First Reformed, Paul Schrader.

Um ensaio – Zadie Smith e uma defesa da ficção (aqui).

Fim de semana

Um filme – Joker, Todd Philips.

Outro – Midsommar, Ari Aster.

Um disco – Two Hands, Big Thief.

Um livro – Prólogo, Ato, Epílogo, Fernanda Montenegro (Companhia das Letras, 342 págs.).

Uma série – Sintonia.

‘Morangos Mofados’, 2019

Quando Caio Fernando Abreu (1948-1996) lançou Morangos Mofados, em 1982, não havia como dissociar o livro do momento vivido pelo país. Em plena transição entre a Anistia de 1979 e o fim formal da ditadura em 1985, era natural que a recepção crítica fosse pautada pelo viés histórico/político. Como se o tom em geral amargo desses 19 contos, que acabam de ganhar nova edição (Companhia das Letras, 188 págs.), refletisse diretamente os tempos duros em que eles foram concebidos.

A leitura não estava errada, mas não era suficiente. Como então notou Heloísa Buarque de Holanda, o autor havia feito um retrato mais íntimo, e ao mesmo tempo mais amplo, de uma experiência de geração que não estava restrita ao grande tabuleiro do poder institucional: “Ao contrário da maioria dos relatos recentes sobre a opção guerrilheira, cuja palavra de ordem é a autocrítica irônica, e que apresentam, às vezes até didaticamente, novos e seguros rumos (…), [o livro] não deixa de revelar uma enorme perplexidade diante da falência de um sonho.”

Dividido em dois grandes blocos, o primeiro bastante pessimista, o segundo com acenos discretos a possibilidades de futuro para os personagens, Morangos Mofados é e não é um documento de época (…). Em Os Sobreviventes, talvez o melhor conto do livro, ou ao menos o mais simbólico, uma personagem reflete sobre o que é abandonar “Marcuse, depois Reich, depois Castanheda”, o culto então já obsoleto à Paris de Sartre nos 1950, à psicodelia na Londres dos 1960, ao hedonismo na Nova York dos 1970. O tom é de algum modo oitentista, na voz de quem tentou de “drogas acupuntura suicídio” a “marxismo candomblé boate gay ecologia”, mas a sensação de queda por trás de tudo não datou: no geral, ainda é possível que isso toque o leitor jovem que tem o primeiro contato com a ficção de Caio. Há vários motivos para tanto.

(Trecho condensado de artigo publicado no Valor Econômico, 11/10/2019. Íntegra aqui).

Fim de semana

Um disco – Ghosteen, Nick Cave.

Outro – Lúcio Maia.

Um artigo – George Packer sobre Roy Cohn e Trump (aqui)

Um vídeo antigo – Roy Cohn x Gore Vidal (aqui)

Um podcast – Thom Yorke sobre música numa ilha deserta (aqui).

Sono versus bombardeio

“Não consigo reconhecer nada que justifique minha decisão”, diz a narradora de Meu Ano de Descanso e Relaxamento, terceiro romance da americana Ottessa Moshfegh (Todavia, 238 págs., tradução de Juliana Cunha), sobre os meses em que se entupiu de remédios para dormir quase vinte e quatro horas por dia. “No começo, eu só queria uns tranquilizantes para abafar meus pensamentos e juízos, já que o bombardeio constante tornava difícil a tarefa de não odiar a tudo e a todos.”

Culta, inteligente e bonita, vivendo de uma herança em meio ao esplendor nova-iorquino da virada do milênio, essa mulher de vinte e sete anos que dá as costas para o trabalho numa galeria de arte e as relações afetivas próximas não é, a princípio, uma personagem a ser gostada. Sua escolha por uma hibernação química que parece um fim em si mesmo, e não um caminho reflexivo, o que seria esperado numa jornada sabática para melhora espiritual (ou de saúde, ou de outro aspecto visto como nobre pela ortodoxia do nosso tempo), soa como mero capricho bem-nascido.

Mas claro que há um truque no discurso. A justificativa busca a cumplicidade de um leitor que, como qualquer pessoa sã a par do noticiário em 2000 ou 2019, também se sente esmagado pelo “bombardeio” – de informação, de estímulo, das cobranças pessoais e profissionais típicas do nosso século. O ideal de escape alienado, que a ideia do sono representa bem, é um tema relativamente comum no mercado contemporâneo dos desejos.

Ou seja, trata-se de um romance concebido para fazer o leitor alternar entre distanciamento e proximidade – entre a repulsa, dadas as várias atitudes condenáveis da protagonista, e uma certa admiração por sua coragem e desprendimento. Num presente que se repete entre lembranças de um passado sem lições a seguir, ela espelha/enfrenta tipos que são faces diversas do mesmo vazio: Reva, a amiga bulímica presa a noções vulgares de beleza; Trevor, o ex-namorado propenso a abusar e ser abusado; Tattle, a terapeuta sarcástica, irresponsável e incapaz de gestos de empatia.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 27/10/2019. Íntegra aqui.