Michel Laub

Mês: março, 2009

Lançamentos em DVD

 

(publicado no guia de DVDs da Folha):

 

Caos calmo – Nanni Moretti já tinha tratado do luto como diretor e ator em O quarto do filho. Talvez por isso tenha sido escolhido por Antonio Luigi Grimaldi para estrelar e ajudar a escrever o roteiro deste filme curioso e original, cuja abordagem vai além da tristeza solene que costuma acompanhar o tema. No papel de um executivo de sucesso que perde a mulher e a partir daí passa os dias num banco de praça em frente à escola da filha, Moretti é um personagem que não aparenta sofrer a dor da perda, mas que consegue transmiti-la por oposição como se ela fosse o negativo presente em seu cotidiano de pequenas alegrias e pequenos reveses, contado em imagens que alternam lirismo e uma simplicidade muitas vezes comovente.

 

Vicky Cristina Barcelona – Difícil saber como este filme seria julgado se o diretor não fosse Woody Allen. Graças a tamanha grife, tudo o que ele tem de frouxo na construção de alguns tipos – como o latin lover irresistível – e na forma como mostra Barcelona – limitando-se a imagens turísticas – é visto de maneira generosa, como uma ironia com os lugares-comuns da visão americana sobre a Europa. Apesar dessa vantagem nem sempre justa, são inegáveis os dois principais méritos da história: a composição da personagem de Scarlett Johansson, com seu vício trágico na novidade das relações amorosas, e a fúria exuberante de Penélope Cruz como mulher que encarna os sonhos e pesadelos de boa parte dos homens.

 

Falsa Loura – Considerado o contexto do cinema brasileiro recente, repleto de filmes pessimistas sobre a vida nas favelas, a proposta de Carlos Reichenbach tem certo frescor: retratar o universo da baixa classe média operária com a mão um pouco mais leve, fugindo da ideologia e (quase sempre) do paternalismo. Mas se há interesse sociológico na ambientação dos bailes, das jornadas na fábrica e do cotidiano na periferia onde mora a protagonista, interpretada com vivacidade por Rosanne Mulholland, a encenação da história é irregular. Não por às vezes fugir da verossimilhança, caso dos números musicais e dos personagens caricatos – o cantor galã, o vizinho com sotaque carregado, o advogado rico e malévolo -, e sim por permitir que alguns diálogos e dramas se contentem com a densidade de uma novela de TV.

Fim de semana

 

Um lançamento em DVDCaos calmo, de Antonello Grimaldi.

 

Um livro O som do pasquim, org. Tárik de Souza (Desiderata, 230 págs.).

 

Uma peçaAmor de servidão, nos Parlapatões.

 

Uma músicaWhat’s good, Lou Reed.

 

Um restaurante – Santa Madalena, na Santa Madalena.

Egopress

 

Circula hoje o guia de livros, discos e filmes da Folha de SP, onde escrevi umas notinhas.

Sobre influências literárias

 

Sempre dou um desconto para declarações de escritores sobre influências literárias. É muito difícil detectar ou admitir as relações obscuras, ou nem tanto, entre algo que você leu um dia e algo que aparece no seu texto anos, às vezes décadas depois. Além disso, ao menos se tratando de quem está preocupado em seguir um caminho próprio, existe um instinto que repudia e afasta vozes alheias assim que são percebidas, com o que elas deixam de ser importantes.

 

Melhor ficar, portanto, com um segundo tipo de influência – mais palpável e direta, menos problemática ou vergonhosa de ser reconhecida. É o caso das listadas por Raymond Carver no ensaio Fires, que está na coletânea Call if you need me (Vintage, 300 págs.): uma corrida de cavalos que deu origem a uma história, por exemplo, ou o sentimento de “responsabilidade inescapável” por ter tido dois filhos cedo e a partir de então precisar trabalhar e ter pouquíssimo tempo para a literatura – o que o fez se dedicar ao conto, gênero que não exige o ócio e a concentração contínua do romance.

 

Ao contrário de Flannery O’Connor, para quem “nada de muito importante acontece depois dos 20 anos”, Carver só consegue enxergar em seus livros ecos de acontecimentos da vida adulta, o que credita à “benção” da falta de memória. Mas claro que ele está enganado, e aqui entra a terceira espécie de influência na carreira de um escritor: aquela que o faz, em algum ponto de sua infância/adolescência, diante de opções tão numerosas e à primeira vista muito mais atraentes, passar a se dedicar com regularidade à leitura. Nada haveria sem esse passo inaugural, que parece corriqueiro depois de tanto tempo passado, mas que na verdade é o maior mistério deste mundo – o literário – capaz de transformar uma convenção inútil no centro da vida de tanta gente.

Duas manifestações de ânimo

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Primeiro, a do narrador de W.G.Sebald em Austerlitz (Companha das Letras, 287 págs.):

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“Sobretudo nas horas do crepúsculo, que sempre haviam sido as minhas preferidas, eu era acometido por uma angústia a princípio difusa, depois cada vez mais densa, em virtude da qual o belo espetáculo das cores que empalideciam se transformava em uma lividez maligna e sem luz, o coração no peito se comprimia até um quarto do seu tamanho natural, e na cabeça só me restava um pensamento: preciso subir ao patamar do terceiro piso de uma certa casa na Great Portland Street, onde alguns anos atrás tive um estranho impulso depois de uma consulta médica, e me jogar da balaustrada nas profundezas escuras do poço da escada.”

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Depois, a de Raduan Nassar numa entrevista à revista Veja,  1997:

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“Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono.”

Fim de semana

Um show – Radiohead + Kraftwerk.

Uma homenagem – o perfil e os trechos de John Updike na New Yorker de aniversário.

Um filmeEntre os muros da escola, de Laurent Cantet.

Uma exposição – fotos de Lenise Pinheiro no Sesc da Paulista.

Um restaurante chileno – El Guatón, na Arthur de Azevedo.

Radiohead em 4 itens (e 40 músicas)

Grunge – referência pouco lembrada do início da carreira, talvez porque o vocal melódico, auto-piedoso e inglês de Thom Yorke seja o oposto do registro cru, enérgico e americano de Kurt Cobain e seus antecessores e epígonos. Mas algo da estrutura musical das bandas de Seattle – a alternância entre leveza e peso, harmonia e distorção, melodia e gritos – está em faixas como The Bends, Stop whispering, Just, Bones e especialmente Creep e My iron long, cujos trechos barulhentos têm ecos do refrão de Heart shaped box, do Nirvana.

Arranjos – Tanto as guitarras expansivas – You, Prove yourself, I can’t, Electioneering, Anyone can play guitar – quanto as climáticas – Subterranean homesick alien, Let down, Knives out –, passando pelas que fazem um misto de ambas – Blow out, Planet telex, Bodysnatchers, Paranoid android. Tanto os baixos que guiam os andamentos quanto os que os pontuam de forma mais autônoma – Airbag, 15 Step. Tanto as baterias tradicionais quanto as quebradas e/ou programadas em sintetizadores – Idioteque, Reckoner, Videotape, Blackdrifts. No conjunto, e com o apoio de xilofones, violinos e das mais diferentes formas de teclados e efeitos de estúdio, a façanha de soar contemporâneo independentemente das modas que põem e tiram de cena outras das várias influências da banda – entre elas o jazz, a música eletrônica, a música erudita, a música ambiente.

Tristeza – Não a das letras, que frequentemente caem num lamento até certo ponto fácil contra a vida moderna e a cultura de massas, e sim a da música mesmo: da que se manifesta de forma eufórica, como que fascinada pela própria beleza melódica e desesperada em High and dry, Nice dream, Black star e Karma police, até a sublinhada e a um passo da caricatura – No surprises, Fake plastic trees, Scatterbrain, How to disappear completely –, mas ainda assim capaz de uma empatia que nunca cai na comodidade sentimental.

Experimentalismo – O que Nick Hornby, numa resenha célebre sobre Kid A, acreditava ser apenas uma resposta dissonante, fragmentada e anti-mercadológica às expectativas criadas por Ok computer, uma espécie de interregno charmoso anterior a uma possível volta legitimada ao hit parade, e que acabou se revelando a vocação primeira da banda – o destino para onde converge, como numa escala evolutiva, as passagens anteriores pelo rock e o pop mais reconhecíveis.  Nesse Radiohead novo e definitivo, que sempre demora um pouco para ser entendido e apreciado, há pérolas que não escondem a própria dificuldade – Everything in its right place, Pyramid song, Sit down, stand up, We suck young blood, Optimistic –, mas as obras-primas ainda guardam algo da comunicação direta da fase inicial: A punchup at a wedding, Morning bell (a primeira), 2+2=5, Weird fishes, Jigsaw falling into place.

Faulkner, Thomas Bernhard, García Márquez

 

A primeira tarefa de qualquer escritor, como se sabe, é convencer o leitor. Isso não significa fazê-lo acreditar na “verdade” do que está sendo contado, e sim permiti-lo embarcar no que Coleridge chamava de suspensão voluntária da descrença, conceito que se aplica tanto ao realismo ortodoxo quanto à menos linear das fantasias. O processo para chegar a tal estado não deixa de ser misterioso, como aquele que nos faz dizer se um ator é bom ou não. Mas há elementos que servem de pista para julgarmos se um texto cumpre a tarefa.  

 

De cara, dá para pensar em três: o tom, a linguagem e a coerência narrativa com o gênero escolhido. Curiosamente, são atributos que, ao serem usados para obter um efeito determinado, o do convencimento por meio da convicção, acabam juntando três autores do Século 20 de aparência muito diversa entre si.

 

O primeiro deles é García Márquez. No seu caso, era necessário fazer o leitor acreditar que crianças podem ser carregadas por formigas, ou que houve uma epidemia de esquecimento num pequeno povoado onde existem homens que são seguidos por borboletas amarelas. Para tanto, ele usou o método da especificidade, sobre o qual tem uma frase famosa: “Se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar em você. Mas se disser que há quatrocentos e vinte e cinco elefantes no céu, as pessoas provavelmente acreditarão.”

 

O segundo autor é Thomas Bernhard, cuja tarefa não é bem convencer sobre fatos inusitados, e sim sobre uma verdade própria que é apenas do narrador. Quando essa verdade é repetida indefinidamente, numa espiral obsessiva que acrescenta nuances sutis de tom a frases simples como “não há nada como um bom copo d’água” ou “a fotografia é o maior desastre do Século 20”, o leitor é como que arrastado pelo caráter definitivo dessa fala, que não deixa nenhum espaço para dúvida. Não importa mais se o que está sendo dito é verossímil no mundo real: a forma como está sendo dito é que passa a ser uma espécie de realidade.

 

Se Bernhard e García Márquez usam a convicção para obter um resultado também cômico – não por acaso, os livros de ambos estão repletos de um típico humor de ênfase, de frases seríssimas ou xingamentos ditos por alguém o tempo todo se controlando para não rir –, o terceiro dos escritores aqui listados, William Faulkner, extrai daí um caráter trágico. É o que está nas entrelinhas da fala de personagens que tentam desesperadamente convencer o mundo de que estão certos: quanto mais eles se debatem para fugir de seu destino, o mesmo que negam em suas opiniões peremptórias sobre homens, mulheres, deus e o demônio, mais sabemos que não há outro desfecho possível para suas trajetórias. E é justamente a coerência dessa fala, também apresentada como única leitura possível do mundo, que torna romances como O som e a fúria tão densos e inesquecíveis.

Fim de semana

Um diário: Martha Nowill sobre uma viagem à Rússia na Piauí.

Um filme bom para dormir: Três macacos, de Nuri Bilge Ceylan.

Uma exposição: artistas argentinos na Choque Cultural.

Uma festa: Talco Bells

Um bar S&M (pelo menos na hora de pagar a conta): Dry.

Cronenberg, Amis e o terror russo

 

David Cronenberg costuma ver o corpo humano como primeira e última fonte de qualquer drama. É só pensar em A mosca, sobre um cientista que se transforma em inseto; Gêmeos, todo baseado num determinismo genético; ou Spider, que trata de um garoto manipulado pela própria loucura.

 

Senhores do crime, que saiu há pouco em DVD, não é muito diferente – e uma das melhores cenas do filme mostra como as tatuagens de Viggo Mortensen podem contar a história de sua vida. Mas há também um dado cultural no enredo, presente já na ironia do título original, Eastern promises. É uma referência a uma promessa feita a Naomi Watts por Seymon, russo dono de um restaurante em Londres, magnificamente interpretado por Armin Mueller-Stahl.

 

Para quem não viu o filme, basta dizer que a promessa logo será descumprida. Não chega a ser uma surpresa porque já havia um leve desconforto, que indica algo ruim prestes a acontecer, nas falas iniciais de Seymon. Fiquei pensando nos motivos disso, e a conclusão é meio óbvia: 1) porque o personagem é russo; 2) porque há toda uma tradição cinematográfica, com origem na Guerra Fria, em que personagens com sotaque do leste europeu são perigosos; 3) porque tudo o que o ocidente imagina sobre a Rússia hoje diz respeito a máfia e crime. Mas Cronenberg vai um pouco além.

 

Em Casa de encontros (Companhia das Letras, 238 págs.), como é característico em vários de seus livros, Martin Amis faz referência constante a uma espécie de mal essencial, inapelável, que se projeta sobre os personagens como uma sombra maior que seus pequenos horizontes. O que eram o nazismo, as bombas nucleares e o suicídio em A seta do tempo, Einstein’s monsters e Trem noturno, respectivamente, em Casa de encontros é o que ele chama de “a mão pesada russa”. O que, segundo uma frase de Conrad citada no romance, se deve a uma herança histórica marcada pela “freqüência do excepcional” – um pesadelo de guerras, massacres e tirania acentuado pelo fato de que “na escala mais ampla, destino é demografia, e a demografia é um monstro”.

 

De certa maneira, essa idéia está no centro de Senhores do crime. Como se personagens como os de Mortensen e Mueller-Stahl fossem sobreviventes de um horror que não pode ser sequer imaginado, a fonte de todo o potencial maligno de suas ações. Tamanho poder de sugestão, que nunca foi uma especialidade de Cronenberg, curiosamente o aproxima do cineasta contemporâneo que, em outro universo e com outros objetivos, mais sabe manejar o recurso: David Lynch. E faz do filme, visto por parte da crítica como convencional, o melhor do diretor canadense em muitos anos.

Egopress

 

Nesta terça, às 22h30, estarei no programa do Lobão (MTV Debate), cujo tema é reforma ortográfica.

A alegria em duas versões

 

Primeiro, a descrita por J.M.Coetzee em A vida dos animais (Companhia das Letras, 144 págs.): 

 

“Como é ser um morcego? Nagel sugere que, antes de podermos responder a essa pergunta, precisamos ser capazes de experimentar a vida do morcego por meio das modalidades sensoriais de um morcego. Mas ele está errado; ou pelo menos está nos colocando na trilha errada. Ser um morcego vivo é estar cheio de ser. Ser plenamente morcego é igual a ser plenamente humano, o que quer dizer também estar cheio de ser. Ser-morcego no primeiro caso, ser-humano no segundo, talvez, mas essas considerações são secundárias. Estar cheio de ser é viver como corpo-alma. Nosso nome para a experiência de ser pleno é alegria”.

 

Depois, a que Guimarães Rosa descobre no meio do jardim numa das novelas de Corpo de baile (Nova Fronteira, 266 págs.):

 

“Ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas – cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha.”

Filmes em cartaz

 

Milk, de Gus Van Sant – uma série de atributos impecáveis – direção, atuações, reconstituição de época – a serviço de uma certa facilidade, pelo menos em relação ao público esclarecido: o fato de que somos todos a favor dos direitos civis universais e da luta de figuras como Harvey Milk. Van Sant quis fazer uma homenagem e teve a habilidade de não produzir um mero panfleto, mas não foi muito além disso: justamente ou não – e só quem conhece a história real pode saber –, seu protagonista não tem muito relevo ou contradições, e sua trajetória é um tanto previsível, com o desfecho inclusive anunciado logo na abertura.

 

Frost/Nixon, de Ron Howard – Caso semelhante ao de Milk – sabemos para quem torcer desde o início –, mas com uma diferença a seu favor. Embora seja um diretor com menos recursos que Van Sant, e talvez até por isso, Howard não teve medo de aderir a alguns convencionalismos narrativos que acabam dando tempero à história. O momento Rocky Balboa, por exemplo, quando, já quase derrotado, o entrevistador percebe que precisa dar duro se quiser virar o jogo. Ou os pequenos tiques que fazem de Nixon uma figura mais charmosa e humana do que pressupõe a versão que temos a seu respeito.

 

Quem quer ser um milionário?, de Danny Boyle –Triste que o cineasta que fez os ótimos Cova rasa e Trainspotting, e já prenunciava o declínio com Por uma vida menos ordinária, A praia e o superfaturado Extermínio, tenha se conformado em piscar o olho para a crítica neste suposto tributo a Bollywood. O filme é uma armadilha: basta apontar o óbvio – o esquematismo do roteiro, a inverossimilhança dos personagens, a abordagem turística da Índia, a ligeireza moral dos conflitos, as cenas gratuitamente desagradáveis – para que sejamos acusados de não entender as intenções paródicas do roteiro. De minha parte, prefiro os originais com princesas e elefantes – isso, claro, na hipótese de estar tomando choque da polícia e precisar escolher.

Fim de semana

 

Um livro Brasil, a história contada por quem viu, org. Jorge Caldeira (Mameluco, 656 págs.).

 

Um filme Frost/Nixon, de Ron Howard.

 

Uma músicaBlack Soul Choir, 16 Horsepower

 

Uma exposição para quem gosta de quadrados – Josef Albers no Instituto Tomie Ohtake.

 

Um lugar para quem gosta de hambúrguer – Ritz.

Egopress

 

1) Meu novo livro, O gato diz adeus, sai em abril pela Companhia das Letras.

 

2) Longe da água acaba de sair na Argentina pela editora da Universidade de Córdoba, com tradução de Miguel Koleff.

 

3) Aqui, site da Academia Internacional de Cinema de São Paulo, onde dou uma oficina de ficção neste mês.

A vida em 84 mexilhões

 

“Ele sempre abafa a tristeza destes temas – a perda de tempo, a vida passando, o jeito como as velhas maneiras desaparecem – e deixa que o leitor sinta apenas o prazer que vem de suas descobertas muito pessoais”. O trecho fala do jornalista e escritor americano Joseph Mitchell, é uma citação da crítica a uma de suas maravilhosas coletâneas de reportagens e está no Livro das Vidas, seleção de obituários do New York Times (Companhia das Letras, 312 págs.).

 

Troque “descobertas pessoais” por uma lista de memórias idiossincráticas, postas no mesmo nível dos feitos grandiosos do morto, tudo acenando para um sentido de coerência e integridade que a vida nunca conseguirá ter, e aí está a essência da arte do obituário. Os da Economist às vezes fazem isso com uma ironia tão aguda quanto discreta, na melhor tradição inglesa, e têm como objeto nomes conhecidos da política, das ciências, dos esportes, das artes. Já os do NYT falam de gente comum, com exceções como o próprio Mitchell. Também são menos distanciados, apesar da forma elegante com falsa aparência de neutralidade, e isso talvez explique seu sucesso num veículo lido por todas as classes. O humor aqui, quando há, é doce e a favor do personagem:

 

“[Mitchell] também era o poeta da zona portuária, da divulgação da grandeza de Nova York como porto marítimo, do mercado de peixes de Fulton, dos catadores de mariscos de Long Island e dos catadores de ostras em Staten Island: gente que vendia e comia frutos do mar, e que falava disso incessantemente (…). Num domingo de agosto de 1937, ganhou o terceiro lugar num concurso de comer mariscos em Block Island, depois de engolir 84 mexilhões. Segundo ele, ‘foi uma das poucas realizações dignas da minha vida’.”