Como derrotar o monstro
Em abril de 2013, quando fiz 40 anos, publiquei na Folha de S.Paulo uma lista de coisas que julgava ter aprendido com o tempo. Em meio às frases de efeito que eu gostava de usar na época, um dos itens do texto traz uma ideia que hoje soa como piada: a de que a tecnologia digital seria só um meio, e que em “90% dos casos” daria para “se adaptar a ela no que importa”.
Quem escreveria isso em 2023? Na última década fomos mergulhados no vale da morte das redes sociais, o que foi decisivo em eleições apertadas de países como os Estados Unidos e o Brasil. O otimismo possível diante desse cenário virou uma pergunta que por enquanto é só teórica: se o aparato das grandes plataformas digitais foi criado por humanos para moldar/ressaltar o comportamento de outros humanos, não estaria na humanidade a prerrogativa de controlar o monstro? Ou seja, de voltar a fazer com que ele seja um instrumento a favor da emancipação individual, da diversidade cultural e econômica, o que em escala maior favorece a democracia?
Os trechos mais sombrios de A Máquina do Caos, do jornalista americano Max Fisher (Todavia, 512 páginas, tradução de Érico Assis), mostram como isso seria difícil. Fundado num trabalho excepcional de apuração, que entrevistou ex-funcionários das Big Techs, hackers, ativistas e vítimas de horrores virtuais/reais, além de reconstituir os debates de ponta sobre o tema nas ciências exatas e humanas, o livro organiza informações, joga luz sobre episódios conhecidos e acaba montando um panorama vasto, a descrição de como os ideais dos anos 1960 – o DNA de quem fez o Vale do Silício – levou a um modelo de financiamento de alto risco, avesso a regulações internas e externas que ameacem os dogmas da liberdade antissistema.
Parece só uma escolha entre as possíveis no capitalismo, mas os efeitos culturais dela vão muito além. Alto risco gera necessidade de alto retorno, o que por sua vez cria a missão hoje adotada por todas as empresas do ramo: manter as pessoas o maior tempo possível online, maximizando os ganhos com anúncios e uso de dados. O que ocorreu nos últimos anos passa, antes de mais nada, por questões técnicas decorrentes dessa lógica quantitativa. A radicalização da misoginia nas redes, por exemplo, que também está na raiz dos fenômenos Trump e Bolsonaro, seguiu a percepção de que no mundo dos jogos eletrônicos a maioria a ser contemplada com sugestões de conteúdo atraente – aquele que desperta interesse com iscas identitárias – era composta por homens jovens com dificuldades na vida social.
Já o massacre étnico de Myanmar, que vitimou estimados 25 mil muçulmanos a partir de 2016, não teria ocorrido sem um projeto de expansão mercadológica. O Facebook entrara no país no início da década, tornando-se a principal fonte de informação onde não havia registro de ódio interno em tal escala. A plataforma não tinha interesse nas mortes em si, mas se recusou a fazer qualquer coisa a respeito delas porque isso diminuiria o lucro. “As empresas de cigarro levaram meio século (…) para admitir que seus produtos causavam câncer”, escreve Fisher sobre o precedente que então poderia ter sido aberto. “O Vale do Silício reconheceria de mão beijada que seus produtos podiam causar sublevações, incluindo até um genocídio?”
Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 20/4/1973, sobre o livro de Max Fisher e o ensaio Formas Intermediárias, de Olavo Amaral. Íntegra aqui.