(Publicado no blog da Companhia das Letras):
Numa entrevista à Prospect Magazine, em 2010, Martin Amis lamentou o pouco prestígio dos escritores cômicos, ao menos em relação aos seus colegas sérios. É uma queixa comum entre praticantes do gênero e leitores saudáveis, inclusive por aqui: “A literatura brasileira contemporânea e sua irmã, a crítica (…), parecem ter se esquecido por completo da lição de Machado”, escreveu Sérgio Rodrigues em seu blog. “E — num país basicamente absurdo, o que é mais absurdo ainda — tentam empurrar o humor e a ironia para fora de seus domínios, como se fossem recursos estéticos necessariamente menores.”
Amis arrisca algumas explicações para o fenômeno. Uma é que o humor teria algo de “anti-democrático”: ri-se de alguém ou alguma coisa, o que pressupõe um sentimento de superioridade facilmente relacionado a gênero, classe, etnia ou religião — os tabus, enfim, de uma época asfixiada pelo fetiche da igualdade. Outra é que boa parte dos leitores adultos de hoje foi educada sexualmente com pornografia, a “morte dos sentimentos” cuja característica talvez principal o próprio entrevistado definiu como falta de humor.
A última frase é uma piada, claro, como outras respostas talvez sejam. Nomes como Dostoiévski, Dickens, Tolstói e Flaubert são elogiados por serem “divertidos”, conceito que passaria longe de J.M. Coetzee (“ele não tem talento”) e do “alemão que escreve sem separar parágrafos” (provavelmente Thomas Bernhard, que era holandês/austríaco). Há uma verdade aí, porém: tendemos a achar engraçados — ou prazerosos, outra tradução possível para as palavras de Amis — aqueles textos de que gostamos, mesmo os áridos e trágicos. Tenho um amigo que ri ao comentar os romances de Faulkner. Kafka gargalhava quando lia em voz alta sua obra. Eu mesmo, que não tive uma reação assim com O processo ou O artista da fome, sempre me divirto ao lembrar de seus enredos, ou ao menos da existência do tipo de pessoa capaz de criá-los.
É uma diversão externa ao texto, mas isso é parte da essência da comédia. No recém-traduzido Meus prêmios, de Thomas Bernhard, eu já estava rindo na segunda vez em que apareceu o nome Kleiner Staatspreis no relato O Prêmio Nacional Austríaco de Literatura. Não porque as duas palavras sejam cômicas em si — nenhum leitor desta coluna acha, imagino —, mas porque conheço a obra de Bernhard e pressenti o que aconteceria dali por diante: a repetição delas num ritmo muito particular, num tom que para mim — e sempre ouço a voz do autor ditando o texto que está à minha frente — é o mais debochado possível. Há uma predisposição, uma boa vontade análoga à que temos com piadas contadas por alguém que nos é simpático. E que, se for o caso, se estende a quem nem mesmo está tentando ser engraçado.
Num dos textos de O imitador de vozes, o mesmo Bernhard diz que o segredo do sucesso de um dramaturgo é “escrever tragédias como se fossem comédias, e comédias como se fossem tragédias”. A inversão, outra piada no contexto em que aparece, lembra que nem sempre o humor precisa se anunciar para ser entendido como tal. Eu diria, inclusive, que algumas da vertentes mais nobres do gênero se fundam em situações, discursos e sentimentos que nada parecem ter de humorísticos. Amis considera Tolstói engraçado/divertido por sua “pureza e verdade”. Dá para botar na mesma família — pode-se ler todos a sério ou com alguma ironia — a erudição de Borges, uma certa chatice de Beckett e, bem, o controle e a frieza de J.M. Coetzee.
Talvez haja aí um paralelo com o humor involuntário, que tem menos a ver com seu protagonista/narrador que com o público. Mas diferentemente do humor involuntário tradicional, no qual exercemos nossa condescendência ou sadismo, a diversão de Amis com Dostoiévski, Dickens, Tolstói e Flaubert — ou a de muitos leitores com Kant, Adorno, Evanildo Bechara e vai saber quem mais — tem um sentido generoso. Que homenageia as neuroses, obsessões e idiossincrasias — é delas que rimos, agradecidos — sem as quais acreditamos que um autor nunca escreveria obras tão maravilhosas.
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