“Não faças poesia com o corpo”, escreve Carlos Drummond de Andrade num poema célebre de A Rosa do Povo (1945). “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”; “Não cantes tua cidade, deixa-a em paz”; “Não recomponhas/ tua sepultada e merencória infância”; “vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família/ desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.”
Os versos soam como um chega para lá em certa lírica derramada, uma defesa do rigor da forma contra o sentimentalismo flácido: “Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intacta./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.”
Penso em Drummond ao abrir o mais recente livro de Ana Martins Marques, sua conterrânea mineira e um dos nomes centrais da nova poesia no país. Em Risque esta palavra (Companhia das Letras, 120 págs.), há um pouco dessa ideia de que tudo começa e termina na linguagem. Num nível superficial de entendimento, claro, trata-se de uma obviedade. Mas na compreensão do que faz a raridade de um bom poema, aqui está a chave mestra: se a busca da palavra exata não é condição suficiente no processo, é o mais necessário dos passos. Identificar essa palavra, o lugar intransferível dela dentro de uma sintaxe igualmente intransferível, é obrigar o estado de dicionário a abrir suas “mil faces secretas sob a face neutra”.
Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 16-7-2021. Íntegra aqui.
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