Trechos de Lanterna mágica, autobiografia do cineasta e diretor de teatro sueco (Cosac Naify, 319 págs., tradução de Marion Xavier):
“Para o meu irmão, as coisas eram muito piores. Muitas vezes minha mãe sentava-se ao seu lado na cama e punha compressas em suas costas, onde a ripa fizera soltar a pele e o marcara com lanhos e sangue. Como eu odiava meu irmão e tinha medo de seus ímpetos de loucura, encontrava grande satisfação no fato de ele ser castigado tão duramente.”
“Confiando no silêncio de meu vizinho de carteira na escola, que se chamava Nisse, contei que meus pais haviam me vendido para o Circo Schumann (…). No dia seguinte, minha fábula estava na boca de todos (…). A professora achou o assunto tão sério que escreveu uma carta a minha mãe (…). Fui colocado contra a parede, humilhado, foi um escândalo (…). Vinguei-me do meu ex-amigo perseguindo-o ao redor do pátio da escola com a faca de escoteiro do meu irmão. Quando uma professora se atirou entre nós dois, eu tentei mata-la. Recebi uma suspensão da escola e apanhei muito em casa. Mais tarde, o meu falso amigo contraiu paralisia infantil e morreu, o que me alegrou muito.”
“Nasce minha irmã, eu tenho quatro anos (…). O demônio do ciúme cravou suas garras em meu coração; estou furioso, choro, faço cocô no chão e me lambuzo todo. Meu irmão mais velho e eu, habitualmente inimigos mortais, celebramos a paz e planejamos diferentes maneiras de matar o repugnante animal (…). Numa tarde silenciosa, penso estar sozinho no apartamento e me esgueiro para o quarto de meus pais, onde aquele ser está dormindo no seu berço cor-de-rosa. Puxo uma cadeira, fico de pé nela e vejo o rosto inchado e a boca cheia de baba. Meu irmão tinha me dado instruções exatas sobre como deveria executar o ato. Mas entendo mal. Em vez de apertar a garganta da minha irmã, tento pressionar o seu peito. Ela acorda imediatamente com um grito lancinante; tapo sua boca com a mão, os olhos aguados e azuis se retorcem e se fixam em mim, dou um passo a frente para me firmar, perco o equilíbrio e caio no chão.”
“No verão de 1984, meu irmão (…) estava com 69 anos, aposentado como cônsul-geral. Tinha lutado incansavelmente para manter seu posto, apesar de uma severa paralisia. Naquela ocasião, podia mexer somente a cabeça, respirava com dificuldade e a fala era quase incompreensível (…). Ele recordava muito mais que eu: falou de seu ódio ao nosso pai e sua forte ligação com nossa mãe. Eles continuavam sendo, para ele, os pais da infância, seres míticos, caprichosos, incompreensíveis e superdimensionados. Deparamos com caminhos muito fechados e restou-nos olhar um para o outro, espantados: dois senhores envelhecidos, saídos do mesmo ventre e distanciados irremediavelmente um do outro. Nossa antipatia recíproca se extinguira, mas deu lugar ao vazio. Não havia nenhum contato, nenhuma solidariedade. Meu irmão desejava a morte, mas ao mesmo tempo tinha medo dela (…). Mencionou também que não era possível cometer suicídio porque as mãos estavam imóveis.”
“Algumas vezes pensei em minha irmã com uma pitada de remorso. Ela começou a escrever em segredo. Ninguém podia saber o que criava. Finalmente, resolveu-se e me deixou ler. Eu mesmo estava inseguro. Fora de bom grado aceito como diretor promissor, porém era uma negação como autor. Escrevia mal, com maneirismos e sob influência de Hjalmar Bergman e Strindberg. Encontrei, então, em minha irmã, o mesmo estilo forçado e afetado e assassinei sua tentativa, sem pensar que era a única chance de se expressar. Segundo ela mesma, parou de escrever. Se para me castigar, castigar-se a si própria ou por falta de coragem, não sei.”
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