Michel Laub

Mês: junho, 2011

James Wood e a frase perfeita

(Publicado no blog da Companhia das Letras):

O que é escrever bem? Em Como funciona a ficção (Cosac Naify, 228 páginas, tradução de Denise Bottmann), James Wood lembra algo óbvio e ao mesmo tempo complexo: uma frase perfeita não pode admitir um número infinito de variações. “Não se pode aumentá-la [ou diminui-la] sem sofrer algum prejuízo estético (…). Sua perfeição é a solução de seu próprio quebra-cabeça”.

Tudo explicado, e ao mesmo tempo nada. O elogio aos autores escolhidos para ilustrar a tese — Marilynne Robinson, Cormac McCarthy e Saul Bellow, entre outros — é justo? O próprio Wood adverte já no início do capítulo sobre o tema: “Quase toda prosa aclamada como bela (…) não é nada disso.” E boa parte do cânone das oficinas literárias hoje, que de algum modo ainda reza pelo credo de Flaubert, facilmente desaguando no fetiche do objetivismo e da concisão, poderia ser confrontado com uma frase de outro mestre, Henry James: “Adjetivos e advérbios são o sal e o açúcar da literatura”.

Se é complicado definir o que é bom ou ruim num texto, e é ótimo que assim seja, resta ao leitor/crítico se esforçar para convencer os outros da objetividade do próprio gosto. Um pouco na linha da última coluna, feliz (ou infeliz) do escritor que conta com um advogado (ou promotor) capaz de enaltecer (ou atacar) seus atributos com afinco e qualidade, que também é qualidade de prosa. Claro que vamos olhar de outra forma para D.H. Lawrence ao ler o que Wood escreve sobre uma frase de seu romance Mar e Sardenha: “As duas [palavras] gostam uma da companhia da outra, e little short legs é mais original do que short little legs porque pula mais, é mais absurda, força-nos a tropeçar de leve — tropeçar com perninhas curtas — no ritmo inesperado.” Ou sobre uma descrição de Virginia Woolf em As ondas: “O segredo reside na decisão de evitar a imagem usual dos trigais ondulantes e de optar por ‘o dia ondula’: o efeito, de súbito, é que o próprio dia, a própria textura e temporalidade do dia parecem impregnados de amarelo”.

Ficção de qualidade, eu arriscaria se precisasse definir, é um misto de aparato formal/sintático, ilusão de “vida” capturada na página — que pode estar num registro realista, fantasioso, metalinguístico, não importa — e ideias. O nível mais básico da prosa — por que usar uma palavra e não outra — tem consequências nas três esferas: essa palavra precisa ao mesmo tempo ser elegante, o que não é a mesma coisa que “bela”, estar adequada ao tipo de narrador e tom do texto e, por fim, dizer a “verdade”. Uma vez escrevi um ensaio sobre os diálogos de Quentin Tarantino, e uma das frases citadas — “raramente visão e tato concordam sobre o que é bom”, de Pulp fiction — é tão ou mais perfeita (o que se poderia acrescentar ou tirar de seu insight?) que qualquer uma das escolhidas por Wood. Ou seja, a sabedoria sempre será uma forma de beleza. E uma forma constante porque, ao contrário do artifício estético, não varia com a moda e depende menos de justificativas externas.

Parece teórico demais, mas o interessante da literatura é que percebemos isso de forma imediata ao nos depararmos com a tal construção perfeita. Duvido que a maioria dos leitores deste texto, assim como acontece comigo, precise de uma linha além da transcrição que Wood faz de algumas metáforas para enxergar nelas elegância, adequação e verdade: um ninho descrito por Tchekhov como “uma luva que alguém esqueceu numa árvore”, ou os olhos de uma criada de Henry Green como “ameixas mergulhadas em água gelada”, ou o leite transbordando numa carroça que Thomas Hardy diz estar “cacarejando nos baldes”. Tal aprovação tem a ver com nossa história pessoal, com nosso ouvido, com nossa maneira de falar, com nosso humor, gênero, libido, cultura e ética, enfim, com os elementos que nos fazem ser quem somos, mas há um mínimo denominador social — uma convenção estética da nossa época que se entranha na maneira como pensamos e reagimos à linguagem — que, por ser na prática uma segunda natureza, confunde-se com a intuição que experimentamos ao ler um trecho qualquer.

Em resumo, é subjetivo e não é. Dá para explicar e não dá. Mas pensar e discorrer a respeito, tentando entender o funcionamento dessa intuição, e domar portanto os elementos que a compõem, é um exercício sempre estimulante e divertido. Considerando que todo escritor é antes de mais nada um leitor, no sentido de que só vai para a sua página aquilo que ele aprovaria numa página alheia, a dica vale para ambos os lados do balcão.

Feriado

Um filme – Meia noite em Paris, Woody Allen.

Uma edição – Papéis avulsos, Machado de Assis (Penguin/Companhia, 272 págs.).

Outra edição – Cadernos de literatura brasileira – Rubem Braga (IMS, 138 págs.).

Um strogonoff no almoço (para quem tem o convênio da firma) – Ministro 1153.

Uma exposição – Inez Van Lansweerd e Vinoodh Matadi na Bienal.

Um disco de 2001 – The swimming hour, Andrew Bird’s bowl of fire.

Um festival – Terruá Pará, Ibirapuera.

Links

(@michellaub):

– Thomas Pynchon segundo uma amiga de longa data: http://tinyurl.com/5wlx37m, via @ranchocarne

– Conselhos de Tchekov e Raymond Carver para quem quer escrever: http://bit.ly/jJA1qY

– Elizabeth Taylor, Marlene Dietrich e os Beatles no Sahara Hotel and Casino: http://bit.ly/lzd96p

– Assentos para esperar o metrô, linha 4, Paris: http://bit.ly/kAq8XC

– Bunkers abandonados da Segunda Guerra: http://bit.ly/e7u6FR, via @alexandrerodrig

– André Conti, Sergio Flaksman e a tradução de “Liberdade”: http://bit.ly/iyMVEE

– Retratos antigos de oficiais e soldados: http://bit.ly/lBZx3z

– Cantores de ópera em início de carreira (25 imagens): http://nyti.ms/jH8QSV

– Wim Wenders fala sobre fotografia: http://bit.ly/laq7xh

– Cigarros e gente fumando: http://slate.me/jp4rbG

Fim de semana

Uma reforma Sesc Belenzinho.

Um disco Suck it and see, Arctic monkeys.

Um disco de aniversário – The queen is dead, Smiths.

Um bar no Copan – Dona Onça.

Uma série de fotos – Orchard Beach, Bronx, por Wayne Lawrence (aqui).

Três capítulos de um livro – Christopher Hitchens sobre Martin Amis, Salman Rushdie e Edward Said em Hitch 22 (Allen & Unwin, edição digital).

Egopress

1) Nesta quarta, 15/6, 20h, estarei no Sempre um papo, no Sesc Vila Mariana.

2) Na quinta, 16/6, também às 20h, participo do ciclo Memória do processo criativo, no Sesc Belenzinho.

3) Como parte do programa Viagem literária, estarei nas seguintes cidades do interior de São Paulo até o fim do mês: Bastos (20/6, 19h30), Rancharia (21/6, 9h), Palmital (21/6, 19h30), Sumaré (27/6, 14h) e Monte Mor (27,6, 19h).

4) Em 28/6, Diário da queda será discutido no clube virtual de leitura Penguin-Companhia (conversa via Skype, 12h-13h).

5) Ajudei a selecionar trechos de crônicas de Rubem Braga para a nova edição dos Cadernos de Literatura Brasileira, do IMS, que acaba de chegar às livrarias.

6) Dei uma atualizada nas páginas de biografia, entrevistas e críticas do blog.

Links

(@michellaub):

A dama do lotação no Fantástico, 1978, e entrevista com Nelson Rodrigues: http://bit.ly/iNKNT7

– O legado de Orson Welles nos 70 anos de Cidadão Kanehttp://bit.ly/kyQpvz

– Projeto de um avião gigante com salas de jantar nas asas, 1929: http://bit.ly/7vxj8R

– Funcionários públicos (68 fotos): http://bit.ly/h9mktM, via @elrodris

– Livrarias inspiradoras: http://bit.ly/jJV3WG

– Machado de Assis, uma filha adolescente e a velhice, por @jocaterronhttp://bit.ly/jQv7ya

– Pôsteres minimalistas de filmes: http://bit.ly/kuje2s, via @lannamorais

– Projetos que nunca saíram do papel em Porto Alegre: http://bit.ly/jQdpH8, via @xerxenesky

– Mulheres que passaram pela Segunda Guerra: http://bit.ly/keW4dr

– A dificuldade de fotografar um cachorro preto: http://bit.ly/lQuFQS

Fim de semana

Um fotógrafo Richard Learoyd (aqui).

Um japonês Shin-Zushi, na Afonso de Freitas.

Um texto na Piauí Ivan Sant’Anna e o choque Legacy x Boeing da Gol.

Outro texto na Piauí Thomas Bernhard e o prêmio Grillparzer.

Um filme ok em DVD – Gainsbourg, Joan Sfar.

Outro filme ok em DVD – A estrada, John Hillcoat.

‘No more shall we part’, de Nick Cave, lançado há dez anos e comentado faixa a faixa

As I sat sadly by her side – Abertura como uma espécie de resumo, com os acordes básicos de quase todos os arranjos posteriores – lá menor, fá, sol –, a voz eventualmente gemida em excesso e o tema: “Deus não se importa com a sua benevolência/ Mais do que com a falta dela nos outros/ Nem se importa de você olhar/ pelo vidro e julgar o mundo que Ele criou.”

And no more shall we part – Machadinhas enterradas, pássaros que cantam nas profundezas do inverno e o universo gótico/romântico por excelência de Nick Cave, aqui em forma melancólica na balada que começa em 2’30.

Hallelujah – Um violino solitário, como um alerta na escuridão, que quase oito minutos depois, por causa da folga indevidamente concedida a uma enfermeira, deságua num coro sobre vinte baldes de lágrimas a serem enterrados por vinte garotas em vinte covas fundas.

Love letter – Um envelope branco e frio e as palavras erradas de um homem que, sob ventos cruéis e céus carregados, em duas notas simples de piano, na mais direta e comovente das mensagens, sussurra ao vento uma reza de duzentas palavras para alguém que se foi.

Fifteen feet of pure white snow – Mona, Mary, Michael, Mark, Matthew, ficaram todos para trás na tempestade. O vizinho é o inimigo. O doutor não ouve. A enfermeira sumiu de novo, e este é o pior dia que uma pessoa já viveu. O piano das partes calmas remete à solaridade de As I sat sadly…, mas é bom não ir muito nessa.

God is in the house – Entre a descrição de uma cidade sem sofrimento, onde há uma mulher para cada homem e os gatos “são pintados de branco para serem vistos à noite”, e gemidos que dizem o contrário, culminando numa longa e virtuosa capela sussurrada sobre gente que se ajoelha à noite e “muito quietamente grita aleluia”.

Oh my lord – Um homem pensa em dar uma caminhada pela manhã, mas ao beijar a esposa vê a Espada de Dâmocles sobre ela. Uma premonição, uma intuição, o destino que aponta sua lança e faz preces serem respondidas em lágrimas. O mais forte dos temas de No more shall we part – alguém à beira da loucura apelando a deus – é magnificado pelas guitarras, cordas e bateria, em seu crescente monocórdio e irresistível de entropia, dor, medo, desespero, catástrofe e destruição.

Sweetheart come – Interregno num tom um pouco menor e um tanto repetitivo no desfecho. Sobre cães, leões e o fardo de alguém que foi tocado por “mãos estúpidas”, mas agora parece que vai ficar tudo bem.

Sorrowful wife – Também um crescendo que vai da capela pontuada pelo piano, trilha de um casamento celebrado no dia do eclipse, e que se estende em silêncio pelas noites e estações de uma casa perdida entre teixos e jacintos dobrados na intempérie, aos gritos pedindo ajuda de quem não consegue mais ouvir os próprios pensamentos.

We came along this road – Beleza melódica em estado bruto, com violinos reiterativos do piano na última parte, que ganha em singeleza ouvida na sequência do caos de Sorrowful wife. Sobre um homem que deixa a mulher e o amante mortos e – decisão que é sempre um problema neste disco – pega novamente a estrada.

Gates to the garden – Uma estranha paz numa canção de retorno, o encontro de pais fugitivos, filhos adoentados e suas mães, caixas sortidas de planos abortados por caminhos de má sorte rumo aos portões do jardim final.

Darker with the day – Como um réquiem em vocal acelerado, que se alterna com um mantra feminino e dolorido, deste conjunto lírico, trágico, irônico e magnífico de canções: a caminhada, a igreja, os vizinhos, as nuvens, as flores e os Césares e Napoleões que aos poucos somem na noite do tempo e da ausência.

Fim de semana

Um contoHomens de verdade, de Altair Martins, na Bravo de maio.

Um ensaio – Shakespeare e o mundo, por Stephen Marche (aqui).

Outro ensaio – Shakespeare e a própria carreira, por André Conti (aqui).

Um discoDemolished thoughts, Thurston Moore.

Um restaurante em São Francisco Xavier – Alegro.

Uma miniexposição –Burle Marx por Gautherot no IMS/Frei Caneca.