Saudades do quê?
Existe um fenômeno curioso no YouTube. Nos vídeos de rock/pop nacional dos anos 1980/1990, por mais irrelevante que sejam a canção e o artista, os comentários costumam celebrá-los como emblemas de uma época de ouro, quando o cenário musical do país ainda não estaria tomado por marketing e vulgaridade estética. “Como pode tanta música legal numa década só?!!!”, pergunta um desses palpiteiros depois de ouvir Transas e Caretas (1984), do Trio Los Angeles. “As pessoas realmente se divertiam”, sentencia outro na página de um playback de Meu Ursinho Blau-Blau (1983), do Absyntho, apresentado no programa da Angélica. “Hj VC vê no alta horas o cantor tá cantando os jovens tudo parado, lesados, parecem zumbis, congelados, só se divertem se tiver bebidas e drogas.”
À primeira vista, trata-se de gosto pessoal. Ou de nostalgia. O que inclui, em alguns casos, um velho hábito da meia idade: confundir a própria decadência com a decadência objetiva do mundo. Mas não haveria outro sintoma aí, o sentimento cultural regressivo que vira um posicionamento político? Comecei a pensar a respeito ao notar como os internautas avaliam o legado de Renato Russo, líder da banda Legião Urbana e figura central da minha adolescência, em faixas que vão de Será (“para lavar os ouvidos com tanta sujeira que é produzido hoje”) a Pais e Filhos (“como eu queria voltar no tempo em que o mundo ainda era bom”). Ou em comentários que falam de ideologia, sexualidade, comportamento: “Já zoava os jovens pseudo-revolucionários nos anos 80” (em Geração em Coca-Cola), “essa musica (…) fala sobre a Venezuela de hoje” (em La Maison Dieu), “gay sem mimimi” (em Que País é este?), “aí me chamam de homofóbico pq crítico o tal do cantora Pablo” (em Meninos e Meninas).
É claro que há de tudo nesses posts: zoeira, burrice, má-fé e até debates com ideias razoáveis, envolvendo fãs jovens e velhos, de esquerda ou da direita moderada. Mas para o que interessa aqui valem apenas os juízos vindos – ou que parecem vir, ou que não seria estranho se viessem – dos que têm posições reacionárias sobre costumes. Ou seja, dos que hoje chamamos de bolsonaristas. A princípio, o entusiasmo deles com a Legião Urbana é incompatível com o espírito da banda – que, ao menos no início da carreira, na transição entre a ditadura militar e a Nova República, fixou-se no imaginário da juventude como expressão de uma postura política contestatória, a favor da liberdade e da aceitação de diferenças.
Só que talvez não seja tão simples. O inconformismo não é um valor em si, e seus alvos mudam com o tempo. O grito antissistema de uma letra como Que País é Este, composta em 1979 e gravada em 1987, com os célebres versos “nas favelas, no Senado/sujeira para todo lado”, pode acabar na boca de um democrata reformista ou na de alguém que prega a intervenção militar em 2021. No caso de Renato Russo, é tudo apenas questão subjetiva, como ocorre na interpretação de qualquer texto? Ou haverá algo em seu trabalho que fala de perto ao fã retrógrado – e o que lemos nas mensagens do You Tube faz mais sentido do que queremos reconhecer?
Início de texto publicado na revista Piauí, edição de setembro/2021. Íntegra para assinantes aqui.