Michel Laub

Mês: fevereiro, 2023

Como escrever sobre répteis

Em 2001, o jornalista inglês Jon Ronson publicou um livro curioso, Them, sobre a experiência de acompanhar líderes e grupos fanatizados mundo afora – de jihadistas a soldados da Ku Klux Klan, de protestantes que rejeitaram os acordos de paz na Irlanda a combatentes da suposta casta que controlaria guerra, peste e fome no mundo.

Digo curioso não só pelas histórias relatadas, mas pelos efeitos delas sobre o leitor da época. Sempre há um componente trágico no extremismo, tanto em relação a suas vítimas quanto ao caminho sem volta de quem o encarna, mas também pode haver comédia na obsessão, no exotismo detalhista com que são criadas algumas dessas teorias.

A fronteira entre os dois registros depende do contexto cultural. Não há nada de engraçado no supremacista branco que transpira ódio numa das entrevistas feitas por Ronson, mas é difícil não rir do ex-jornalista que acredita na abdução da humanidade por uma gangue alienígena de répteis. Dizendo-se a nova encarnação do filho de Deus, ele responde a quem desconfia de sua autoridade ao divulgar uma lista de ETs disfarçados na qual há nomes como George W. Bush, Bob Hope e a família real britânica: “Diziam o mesmo de Jesus Cristo: quem diabos é você, o filho de um carpinteiro?”.

Them é o retrato de um mundo anterior ao Onze de Setembro, às redes sociais, aos smart phones e seus desdobramentos conhecidos em eleições de anos recentes. Se isso permitia olhar para parte dos personagens do livro até com condescendência, já que os efeitos do pensamento deles eram no geral localizados (e nem sempre geravam violência), fazer piada em cima desse universo hoje é entrar numa zona ambígua. Numa época que se tornou estupidamente literal, a ironia pode ser uma forma de protesto – ou, como qualquer sutileza diante de fenômenos que pedem informação e indignação às claras, um modo de conivência com o horror.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 28/1/2023. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um livro – Latim em Pó, Caetano Galindo (Companhia das Letras, 232 págs.).

Um disco – Língua Brasileira, Tom Zé.

Uma entrevista meio velha-guarda – Salman Rushdie na NY Radio Hour.

Uma série meio histérica – The Bear.

Um filme – A Ilha de Bergman, Mia Hansen-Løve

O que incomoda em Machado

Numa entrevista de 2018, o poeta e professor Ítalo Moriconi comentou sobre o efeito das mudanças sociais das últimas décadas nas aulas do curso de letras da UFRJ. Lá há um número grande e bem-vindo de estudantes contemplados por bolsas e ações afirmativas, o que redefiniu a visão até então comum sobre certos clássicos da ficção brasileira.

O caso mais curioso é o de Machado de Assis. Uma parte considerável dos novos alunos é evangélica, e para ela a ironia laica do autor – com suas histórias bíblicas citadas de maneira enviesada, por exemplo – não é elogiada como valor. “Brás Cubas é muito cético para eles”, diz Moriconi. “Eles no fundo esperam da literatura algo edificante”.

É fácil considerar filistina esse tipo de visão, já que lições de moral e suas variantes não costumam ser associadas com qualidade literária, mas o fato é que a recepção de um romance, conto ou poema depende muito do vai-e-vem das guerras culturais. O próprio Machado, que por algumas décadas foi visto como escritor algo alienado, tão oficialesco quanto o seu busto de fundador da ABL, mudou de imagem nos anos 1960 graças a estudos como os da feminista Helen Caldwell e do marxista Roberto Schwarz.

Ambos partiram de questões formais, em especial a escolha da perspectiva em primeira pessoa, para mostrar que em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro havia um componente subversivo, entrelinhas que diziam o contrário do sugerido pelo valor de face de cada texto. No primeiro caso, a insensibilidade volúvel do narrador defunto, dândi e rentista também é uma crítica à elite em meio à qual ele viveu. No segundo, é a subjetividade radical de Bentinho que ilumina a dúvida sobre o comportamento de Capitu.

Se o critério for a percepção da ironia nesses romances, seu poder de gerar dúvidas narrativas e inquietações políticas, a leitura dos alunos da UFRJ é semelhante às de Caldwell e Schwarz. O que muda, claro, é o juízo de valor sobre o que a ironia acaba gerando. Guerras culturais servem também para isso: determinar quais ataques à sociedade são aceitos, quais utopias – as revolucionárias, as reacionárias – que devem se opor ao imobilismo cético.

Trecho de texto sobre Machado de Assis, Bianca Santana e Aline Motta, publicado no Valor Econômico, 10-1-23. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um livro – O Peso e a Graça, Simone Weil (Chão de Feira, 224 págs.).

Outro – El Polaco, J.M. Coetzee (El Hilo de Ariadna, 144 págs.).

Um texto – Ricardo Balthazar sobre Janio de Freitas na Piauí.

Um filme – Tár, Todd Field.

Um depoimento – João Barone para Bruna Paulin no História do Disco.