Michel Laub

Mês: junho, 2012

Fim de semana

Um disco fazendo 40 anos – Transa, Caetano Veloso.

Um livro bom e ruim, atual e datado – Diário da Corte, Paulo Francis (Três Estrelas, 408 págs.).

Um almoço na Amália de Noronha – Dona Conceição.

Um filme – 360, Fernando Meirelles.

Uma exposição – Jasper Johns no Tomie Ohtake.

10 livros sobre doenças

Publicado no Meia Palavra (ver post anterior):

O imperador de todos os males (Siddhartha Mukherjee) – “Biografia do câncer” e também um ensaio sobre ciência, política, economia, psicologia, história, religião, comportamento, linguagem. Ou seja, tudo.

O demônio do meio dia (Andrew Solomon) – Outro livro sobre tudo, mas partindo da depressão e com um toque mais pessoal do autor: seu medo diário de que a escola onde estudou desabasse, por exemplo, ou a sensação – de madrugada e sozinho numa estrada deserta – de que era incapaz de dirigir um carro.

A menina sem estrela (Nelson Rodrigues) – Provavelmente as melhores crônicas/memórias já escritas em português. Fala de cegueira, tuberculose, gripe espanhola, úlcera e lepra, mas nenhuma doença é tão presente quanto a obsessão.

Origem (Thomas Bernhard) – Também um livro de memórias, também com tuberculose e linguagem obsessiva. Ponto alto: trecho em que o autor repete umas cem vezes em 5 páginas a expressão “direção oposta”.

A montanha mágica (Thomas Mann) – A Europa, as guerras, deus, o tempo, o ser e o nada discutidos incessantemente num sanatório de Davos, Suíça, por pacientes com tosse e febre baixa nos fins de tarde.

A doença como metáfora (Susan Sontag) – Ensaio e depoimento pessoal sobre os simbolismos e crenças em torno dos que, na “dupla cidadania” entre “reino dos sãos” e “reino dos doentes”, passam a utilizar o “passaporte ruim”.

O olhar de Max (Louis Begley) – Romance sobre aids em que, salvo engano, a palavra aids não é usada nenhuma vez. O que combina com a sutileza deste escritor subestimado, talvez o melhor retratista dos ricos americanos do fim do Século 20.

Electroboy (Andy Behrman) – Relato sobre mania, choques elétricos, falsificação de quadros e viagens Nova York-Tóquio-Nova York só para sentir a “diferença de temperatura”.

Patrimônio (Philip Roth) – Um pai morrendo, um filho neurótico, uma orquestra ruim se apresentando num asilo e um romance pornográfico que se passa durante o Holocausto, tudo culminando na maior cena com fezes da literatura.

Febre de bola (Nick Hornby) – Sobre os jogos do Arsenal, o estádio do Arsenal, a torcida do Arsenal e um narrador que “durante quase todos os momentos da vida” se comporta como “um completo débil mental”.

Uma dramaturgia nada clássica

Publicado no blog da Companhia das Letras:

No último encontro que tive com a querida, generosa e talentosa Christiane Riera, que morreu de câncer no mês passado, conversamos sobre um ensaio que ela escreveria para a revista que eu estava editando. A ideia era fazer um paralelo entre a experiência pessoal de um doente e a tradição histórica da dramaturgia, partindo de um exemplo ao mesmo tempo evidente e inusitado: House.

Chris comentava que algo da rotina do tratamento, da relação com os médicos e do ambiente dos hospitais parecia dever à série televisiva, e não o contrário, como seria natural. Não sei até onde ela exploraria o argumento – do texto só ficaram anotações e o esboço de alguns parágrafos –, mas a reflexão sobre os vetores de influência, vida na arte ou arte na vida, seria um começo interessante. Que poderia se estender por outro vetor, o da arte na arte, até porque House não caiu do céu: estrelada por um médico misantropo cuja tarefa é diagnosticar pacientes com sintomas extravagantes, cada um de seus episódios atualiza – com o cientificismo, as fobias e os dilemas éticos de hoje – modelos como o do velho romance policial. Ou do romance psicológico, cujo ritmo se apoia em camadas de informação que vão se sobrepondo, fatos/segredos revelados por um protagonista que investiga outros personagens ou a si mesmo.

Convenções narrativas giram em torno de linguagem e estrutura, e também de temas. Do ideal estético clássico ao registro histórico realista, dos castigos divinos no teatro grego ao amor romântico suicida, de Dante e Shakespeare a Proust e Beckett, a grande arte sempre falou direta ou subliminarmente da precariedade da vida, do tempo que se esvai rumo a algo que não conhecemos – a morte, em suma, cuja presença está sempre por trás de representações da enfermidade. Não é assim porque os artistas decidiram, mas porque a realidade é: crentes, ateus, otimistas, cínicos, todos vivemos diariamente o que Susan Sontag chamou, no clássico A doença como metáfora, de “dupla cidadania” entre “reino dos sãos” e “reino dos doentes”, na qual cedo ou tarde precisaremos usar o “passaporte ruim”.

Se artistas são pessoas como as outras, ao menos na ignorância e fascínio diante da morte, o trabalho que produzem tem sempre algo da perspectiva – real ou potencial, não importa – de um doente. No ótimo O imperador de todos os males, uma “biografia do câncer” que se estende por ciência, história, política, crônica social e linguagem, Siddhartha Mukherjee diz que todo paciente começa como um narrador que confessa sua história: “Nomear uma doença é descrever certa condição de sofrimento – é um ato literário antes de ser um ato médico”. Na via oposta, pode-se acabar existencialmente preso a simbolismos que começam na linguagem: quando o tratamento do câncer é chamado de “guerra”, rotula-se esse paciente como um soldado que precisa ser corajoso e manter o ânimo. Daí a culpá-lo por uma eventual derrota, como se ele não tivesse feito esforço suficiente para viver, é um passo lógica e moralmente curto.

Tais metáforas, mostra Sontag, são frutos de valores históricos. A associação entre tuberculose e poesia no século XIX, por exemplo, é uma resposta ao conservadorismo vitoriano, ou desdobramento dele. O que seria impensável nos menos heroicos anos 1980, quando surge a AIDS e a carga punitiva cristalizada num de seus primeiros apelidos, “peste gay”. Hoje há uma espécie de híbrido entre os extremos romântico e pragmático: cultuando a forma física (dietas, ideal apolíneo de beleza) e uma certa relação entre inteligência e neurose (nada é menos popular na TV, na publicidade e nas redes sociais que a antiga “normalidade” de comportamento), nosso tempo é contraditório quando avalia o desvio dos padrões de saúde. E, como consequência, os artistas que os representam. Do ponto de vista científico, nenhum destes males traz menos ou mais capacidade criativa, mas faça o teste: há mais sugestão de “alma literária” na depressão de David Foster Wallace ou na psoríase de John Updike? Nas internações psiquiátricas de Lima Barreto ou na úlcera que Nelson Rodrigues tratava como “gata de luxo”?

Palavras fazem sentido, e Chris também pretendia escrever – ecoando os ensaios finais de Christopher Hitchens, outra vítima de câncer – sobre a inexatidão de ditados como “o que não mata engorda”. O que ela chamou de “dramaturgia nada clássica”, protagonizada por uma doença caótica surgida em momentos e locais aleatórios, em nada se relaciona com os elementos que nos acostumamos a identificar numa narrativa – a organização em causas e efeitos, as jornadas de aprendizado e redenção. Com sinceridade comovente, ela só via algum paralelo entre a vivência do “corpo dilacerado” e uma definição de tragédia parafraseada de Aristóteles: “Algo que aproxima e distancia ao transmitir compaixão e horror ao mesmo tempo”. No caso de Chris, a lucidez e a coragem surgidas dessa experiência apenas reforçaram minha antiga – e agora eterna – admiração.

Fim de semana

Uma peça – Bom Retiro 958 metros (Teatro da Vertigem).

Um restaurante com 50% de desconto até o fim do mês – Ramona.

Um disco – The Idler Wheel…, Fiona Apple.

Um livro de escritora brasileira – A vendedora de fósforos, Adriana Lunardi (Rocco, 192 págs.).

Outro – No shopping, Simone Campos (Sete Letras, 72 págs.).

O pôquer segundo uma profissional

Trechos do diário de Maria Eduarda Mayrinck publicado na edição de maio da Piauí (integra aqui):

Metagame – “A diferença entre um jogador top e aquele que joga ‘por diversão’ ou mesmo um profissional de limites médios pode ser medida pelas camadas de conhecimento do oponente e de si mesmo exigidas no pôquer – o chamado ‘metagame’. E este só os grandes alcançam. Primeira camada: eu estou jogando contra você, e eu sei o quanto você sabe jogar. Segunda camada: eu também sei que você sabe que eu sei o quanto você sabe. Terceira: como eu sei que você sabe que eu sei o quanto você sabe, eu também sei que você sabe o quanto eu sei que você sabe que eu sei de você. E assim por diante.”

Roupa – “Jogador de pôquer usa a roupa que quiser – pode estar de chinelo, moletom, não importa. Muitos sequer tomam banho – eca. Todos jogam superagasalhados porque faz um frio polar nas salas de pôquer. Eu só uso óculos escuros quando tem tubarão muito forte na minha mesa, daqueles que conseguem ver minha alma pelos meus olhos. De resto, não uso. Tampouco uso iPod, como muitos fazem. Em matéria de etiqueta só é malvisto você trazer comida gordurosa para a mesa e comer com as mãos. Você acabaria lambuzando as cartas, que por sinal são trocadas a cada sessenta minutos. Em compensação, barras de cereais e qualquer outra guloseima fazem parte da rotina de quem fica sentado sem arredar o pé por horas.”

Nacionalidades – “Quem joga mais alto ainda costuma ter a viagem toda bancada, tudo de primeira classe – em alguns casos o jatinho particular do cassino vai te buscar onde você estiver. Acho que apenas um brasileiro, carioca, se encaixa nesse seleto grupo. Os demais são quase todos asiáticos, pois é da Ásia que vem o dinheiro mais pesado. Na outra ponta, basta sentar um russo ou um francês numa mesa de oito ou nove lugares que a lista de espera do jogo se torna imensa e os tubarões começam a nadar em volta (tubarão = jogador bom). Deve ser algo genético a determinar que os russos e franceses sejam, no geral, ruins/péssimos no pôquer. Ou, pelo menos, esse é o conceito.”

Gorjetas – “O carinha que cuida da sala de pôquer do Aria, o novo cassino daqui, telefonou avisando que o jogo que eu gosto está começando. Damos gorjeta o ano inteiro para esses funcionários nos manterem informados. Subo na minha Vespa e em cinco minutos estou sentada na mesa, rindo com os outros jogadores e me preparando para um longo dia de pôquer. Se você não chega rápido, não consegue mais sentar e pode demorar umas vinte horas para conseguir vaga numa mesa boa – mas até lá os jogadores mais fracos já cansaram e foram embora.”

Bankroll – “Avaliar o seu jogo pelo resultado de uma única sessão é coisa de amador. A vida do jogador profissional é a soma de todas as sessões de um ano ou de uma carreira. Saber administrar o seu bankroll de forma a não quebrar. Bankroll (BR) é a soma que você destina para o seu pôquer. Isso não inclui o quanto você dispõe para pagar contas, ir ao cinema, viver. É preciso ser bastante organizado para não atravessar fronteiras e o melhor jeito de fazer isso é nunca arriscar em uma só sessão mais de 10% do seu BR. Nada simples. Eu, por exemplo, separo 30% para o pôquer. De nada me serviria ter uma fortuna presa em investimentos que não podem ser sacados amanhã. Liquidez é o nome do jogo.”

Tubarões e peixes – “No fundo, uma mesa de pôquer funciona um pouco como o ciclo natural das espécies. Os tubarões rondam os peixes porque sem o peixe o jogo não forma, e tubarão esperto sabe que sempre deve tratar bem os peixes: ser simpático, educado, rir das piadas, tudo para manter o cara voltando sempre. Ao longo do caminho, alguns tubarões terminam se mordendo. Natureza do jogo.”

Roleta de cartão de crédito – “Não jogo nenhum jogo de cassino – nem roleta, nem dados, nem blackjack. Não gosto de nenhum jogo no qual eu não tenha uma vantagem matemática calculada. No pôquer você não joga contra o cassino, e sim contra oponentes. Até os espaços físicos são separados: nos cassinos, as salas reservadas ao pôquer são independentes dos salões principais da casa. O máximo que faço em matéria de jogos de azar é uma ‘roleta de cartão de crédito’ com os amigos. Funciona assim: saímos para jantar, não importa se duas pessoas ou vinte, e no final todos colocam o cartão de crédito na mão do garçom. Ele embaralha os cartões escondidos atrás das costas, e vamos em ordem falando ‘Para de embaralhar; o terceiro cartão de cima pra baixo está salvo’ etc. etc. até sobrarem dois cartões na mão do garçom. A última pessoa a escolher fala ‘mão esquerda está salva’ ou ‘mão esquerda paga’ e a pessoa paga o jantar inteiro.”

Amigos – “Por causa do pôquer viajei um total de 112 mil milhas só em 2010. Marquei encontro em Notting Hill com amigos que adoro. Uma é a americana Vanessa, recém-formada por Yale (…). Miranda é sua namorada há dois anos – professora do ensino médio em Nova York, largou tudo para correr o mundo com Vanessa, que ganhou, literalmente, todos os torneios mais importantes do circuito de pôquer internacional em 2009 e 2010. Ela chegou aos 24 anos de idade tendo ganho uns 3 milhões de dólares. O outro amigo é o Joe, metade coreano, metade californiano, que mora no mesmo prédio que eu em Las Vegas. O Joe é do meu tamanho, 1,63 metro em dias bons, mais magro que eu, tenta apostar comigo sobre tudo – ‘Cem dólares que o sinal fica vermelho em quatro segundos, quer?’ – e fez um dos blefes mais famosos e mais caros do pôquer, valendo 2 milhões de dólares (…) E essa é uma das coisas de que mais gosto no pôquer: as pessoas. Elas não julgam. Julgam só no pano, na mesa. De resto, querem é paz e sossego (…) Querem debater par de valetes, ou ás e rei, querem rir e querem apostar… apostar alto.”

Começo – “Hoje moro entre o Rio e Las Vegas e vivo disso. Minha família no início detestou, mas quando fiz uma apresentação para eles mostrando gráficos, dando explicações da diferença entre pôquer e jogos de cassino, eles começaram a entender e a me apoiar. Hoje são meus maiores fãs. Comecei a jogar nove anos atrás, fazendo um depósito inicial de mil dólares. Desde então, já ganhei mais de 1 milhão de dólares, mas isso não significa que eu tenha 1 milhão de dólares – eu sempre reinvisto tudo em mim, nos amigos, nos meus negócios de pôquer, no meu site, pago todos os meus impostos certinho e acabo só andando com uns trocados no bolso.”

Ganhos e perdas – “Meu namorado, que começou na carreira com um depósito de 200 dólares, já ganhou mais de 6 milhões. Mas ele também já perdeu perto de 100 mil dólares numa noite. E ganhou o dobro em outra ocasião. Eu mesma terminei o mês passado com um passivo de 1,9 mil dólares, o que não me assusta, porque está dentro dos meus limites. A vida toda é uma longa sessão – então pode haver meses em que o saldo é negativo. Importante é que o saldo seja positivo ano a ano, senão você quebra e não joga mais. No meu dia a dia sou impulsiva, derramada, penso pouco antes de agir. No pôquer, sou calculista e racional.”

Treino – “Como se treina para jogar pôquer? Tem mil maneiras. Primeiro e mais importante, é preciso jogar. Jogo horas infinitas no computador, pelo menos seis mesas ao mesmo tempo, às vezes chegando a 24. Meu máximo foram 32 mesas simultaneamente. Mas não valeu. Joguei feito robô, não pensava, só agia. É um ritmo insano. Tenho dois monitores ligados no micro, além da tela do próprio computador. As mesas de pôquer ficam expostas nos monitores, enquanto reservo a tela do micro para vídeos do YouTube, músicas do iTunes e o papo aberto com meu estábulo de onze ‘cavalos’ no Skype. Chamamos de ‘cavalo’ o jogador que joga para outro jogador. Os meus jogam para mim online, com o meu dinheiro. O risco é todo meu. Se eles lucram, ficam com 35% do que ganham e eu embolso o resto. Alguns ‘cavalos’ já estão comigo há tanto tempo que faturam 45% ou mais, mas cada caso é um caso. Também tenho um sócio no negócio, além de duas pessoas da minha absoluta confiança que administram os valores movimentados. Isso porque eu não quero gerenciar o que cada um faz, joga, ganha, perde. Tampouco tenho tempo para cuidar de cada um pessoalmente.”

Estábulo – “Nunca tive a intenção de ter um estábulo tão grande – mas foi crescendo, crescendo e cá estamos. Este mês estou testando dois ‘cavalos’ novos. Todos sabem que é proibido ter ego no estábulo, ninguém deve reclamar comigo sobre nada. Se estão com problemas, procuram meus administradores. Só apareço de vez em quando, para dar uma força e um gás no time, mas no geral deixo correr solto. Apenas faço questão que me mandem mãos interessantes para analisarmos juntos, ou para que eu estude sozinha.”

Preparação para o Mundial – “Estou tentando jogar entre mil a 2 mil mãos por dia. Para chegar a esse número, basta jogar entre dez e catorze mesas ao mesmo tempo. Em cada mesa você opera uma média de 55 mãos por hora, o que equivale a um dia de trabalho normal como todo mundo (seis a oito horas de trabalho diário). A meta sempre é ganhar, mas o que me interessa no momento é me testar em diversas situações para, depois, analisar o conjunto com a ajuda de um simulador de mãos. Qual a melhor forma de induzir o adversário a fazer apostas do tamanho que eu quero e como levar meu oponente ao erro são coisas que eu treino sem parar, e o único jeito de treinar é jogando.”

Estratégia – “Joguei 1 277 mãos hoje (…). Adoro quando homens têm preconceito com mulheres na mesa de pôquer (a proporção continua sendo de nove por um), porque isso automaticamente os coloca em desvantagem. Quem joga diferente contra uma mulher pelo fato de ela ser mulher vai cometer erros, então eu deixo. Nunca fiz o papel de gostosa na mesa, porque isso não tem nada a ver comigo; tampouco tentei fazer o tipo inteligente, para não dar bandeira do quanto de fato sei ou não sei. Quanto mais eu deixar a pessoa confusa, melhor será o meu dia. Converso estratégia de pôquer com não mais de dez pessoas no planeta, e basta. Você nunca sabe quando vai jogar contra a pessoa com quem você falou de estratégia, então melhor é ficar quieto.”

Sorte – “Como o pôquer tem um fator sorte a curto prazo, ele permite a qualquer um se tornar campeão mundial ‘acidental’ numa das modalidades da competição. Essa é, a meu ver, a maior beleza do jogo. Literalmente, qualquer um pode ganhar, basta o vento estar a favor. Se você tiver um par de damas na mão pode muito bem quebrar meu par de reis se eu bater uma dama e você fizer trinca. Embora, matematicamente, eu tenha 81% de chances de te derrotar.”

Suor – “O pôquer no mais alto nível exige muito da pessoa e da mente. Quando você desvenda essas camadas do metagame – as suas e as dos seus oponentes –, você passa a andar na ponta da faca mais afiada o tempo inteiro. É muito intenso. E tenso. Tem dias que fico encharcada de suor de tanto esforço, mesmo sem mover um músculo. Desvendar o que te coloca na frente dos seus oponentes a ponto de você saber o que ele vai fazer antes mesmo de ele saber, e como você vai induzi-lo a fazer exatamente o que você quer que ele faça… isso é uma arte para poucos e leva a vida inteira para aprender. Em dias muito iluminados, eu sinto essa ‘musa cantando em mim’ e levo o meu metagame para níveis bastante profundos, mas eu volto rápido para a superfície – preciso de ar. Como já senti essa ‘iluminação’, vivo correndo atrás da sensação novamente.”

Preparo físico – “Um bom preparo físico é crucial para a maratona, porque você vê muito jogador bom derretendo a partir da segunda semana do Mundial. O corpo não aguenta. Você começa a ficar doente por causa das longas horas, o choque entre o calor desesperador do deserto e o ar-condicionado ártico dos salões (nas salas chega a fazer 9 graus e já cheguei a usar cachecol e luva). Se você está sarado, come só comida orgânica sem açúcar, não bebe álcool, tem um bom preparo físico e se depara numa mão às onze da noite com alguém fora de forma, que há dias janta cachorro-quente e batata frita, quem vai tomar as melhores decisões? O outro começa a duvidar das jogadas que faz, perde a autoconfiança, cai num buraco negro. Me mantenho afiada. Treino com um personal, todas as manhãs, cedinho, não saio à noite durante o campeonato, não bebo, vivo uma vida de caserna. Nem telefone atendo para não me distrair. Já cheguei perto várias vezes, mas nunca ganhei um título. Ainda. Neste Mundial vou investir cerca de 70 mil dólares (em torneios meus, dos meus ‘cavalos’ e de jogadores de quem compro alguma porcentagem). David [namorado de Maria Eduarda] deve jogar em torno de 200 mil dólares. Mas o que todo mundo quer, no fundo, é ostentar a cobiçada pulseira de campeão mundial. Chorei quando o David ganhou a dele no ano passado.”

Fim de semana

Um filme – 13 assassinos, Takashi Miike.

Um livro de mesa – Thomas Bernhard (Residenz Verlang, 320 págs.).

Um romance médio – Snuff, Chuck Palahniuk (Rocco, 208 págs.).

Um disco – The sister, Marisa Nadler.

Um churro – Dona Onça.

Uma doença e seu nome

Outro trecho de O imperador de todos os males (ver post anterior):

“Até um monstro antigo precisa de um nome. Nomear uma doença é descrever certa condição de sofrimento – é um ato literário antes de ser um ato médico. Um paciente (…) é, de início, simplesmente um contador de histórias, um narrador de sofrimentos – um viajante que visitou o reino da doença. Para aliviar uma enfermidade é preciso, portanto, começar confessando sua história.

Os nomes de doenças antigas são histórias condensadas. O tifo, uma enfermidade tempestuosa, com febres erráticas, vaporosas, veio do grego tuphon, o pai dos ventos – palavra que deu origem ao moderno tufão. Influenza veio do latim influentia, porque os médicos imaginavam que as epidemias cíclicas de gripe eram influenciadas por estrelas e planetas, que giravam ora para perto, ora longe da Terra. Tuberculose veio do latim tuber, referindo-se a gânglios aumentados que lembravam pequenas hortaliças. A tuberculose linfática era chamada de scrofula, da palavra latina para ‘leitão’, evocando a imagem um tanto mórbida de uma cadeia de glândulas dispostas em linha como um grupo de leitões mamando.

Foi na época de Hipócrates, por volta de 400 a.C., que um termo para câncer apareceu pela primeira vez na literatura médica: karkinos, da palavra grega para ‘caranguejo’. O tumor, com os vasos sanguíneos inchados à sua volta, fez Hipócrates pensar num caranguejo enterrado na areia com as patas abertas em círculo. A imagem era peculiar (poucos cânceres, a rigor, se parecem com caranguejos), mas também vívida. Escritores que vieram depois, tanto médicos como pacientes, acrescentaram detalhes. Para alguns, a superfície endurecida e desbotada do tumor lembrava a dura carapaça do corpo do caranguejo. Outros sentiam o animal mexer-se sob a carne, como se a doença se espalhasse furtivamente pelo corpo. Para outros, ainda, a súbita pontada de dor produzida pela doença era como (…) as tenazes de um caranguejo.

Outra palavra grega que está ligada à história do câncer – onkos, usada para descrever tumores e de onde a oncologia tirou o seu nome – era o termo utilizado para denominar uma massa, uma carga ou mais comumente um fardo; o câncer era imaginado como um peso carregado pelo corpo. Na tragédia grega, a mesma palavra designava a máscara que com frequência era ‘carregada’ por um personagem para denotar a carga psíquica suportada por ele.”

Uma doença e seu tempo

Trecho de O imperador de todos os males, de Siddhartha Mukherjee (Companhia das Letras, 634 págs., tradução de Berilo Vargas):

“A noção do câncer como aflição que pertence, paradigmaticamente, ao século XX lembra, como afirmou Susan Sontag de forma tão dogmática em seu livro A doença como metáfora, outra doença que também foi considerada paradigmática de uma época: a tuberculose no século XIX. Ambas (…) eram consideradas ‘algo obsceno – no sentido original da palavra: de mau agouro, abominável, repugnante aos sentidos’. Ambas exaurem a vitalidade; ambas prolongam o encontro com a morte; em ambos os casos, morrer, mais do que morte, define a doença.

Mas, apesar das metáforas paralelas, a tuberculose pertence a outro século. O ‘mal dos peitos’ (ou tísica) era o romantismo vitoriano elevado ao seu extremo patológico – febril, inexorável, arquejante e obsessivo. Era a doença dos poetas: John Keats fechando-se silenciosamente em direção à morte num pequeno quarto junto à escadaria da Trinità dei Monti, em Roma, ou Byron, romântico obsessivo, que se imaginava morrendo da doença para impressionar a amante. ‘A morte e a enfermidade são muitas vezes belas, como […] o brilho febril da tuberculose’, escreveu Thoreau em 1852. Em A montanha mágica, de Thomas Mann, esse ‘esplendor febril’ libera uma força criativa exaltada em suas vítimas – uma força esclarecedora, edificante, catártica, que também parece carregada da essência de sua era.

O câncer, diferentemente, está carregado de imagens mais contemporâneas. A célula cancerosa é uma individualista desesperada, ‘em todos os sentidos imagináveis, uma inconformada’, de acordo com o cirurgião e escritor Shervin Nuland. A palavra metástase, usada para descrever a migração do câncer de um lugar para outro, é uma curiosa mistura de meta e stasis – ‘além da imobilidade’, em latim –, um estado sem âncoras, parcialmente instável, que captura a instabilidade peculiar da modernidade. Se a tuberculose outrora matava suas vítimas por evisceração patológica (o bacilo aos poucos torna oco o pulmão), o câncer nos asfixia invadindo nossos tecidos com células em excesso; é o significado oposto ao da tuberculose – a patologia do excesso. O câncer é uma doença expansionista; invade os tecidos, estabelece colônias em paisagens hostis, buscando ‘refúgio’ num órgão e depois emigrando para outro. Vive desesperada, inventiva, feroz, territorial, astuciosa e defensivamente – por vezes como se nos ensinasse a sobreviver. Enfrentar o câncer é encontrar uma espécie alternativa, talvez mais adaptada à sobrevivência do que nós mesmos (…). O câncer é um invasor e colonizador fenomenalmente bem-sucedido porque explora as mesmas características que nos tornam bem-sucedidos como espécie ou organismo.”

Feriado

Um ensaio de Jonathan Franzen – The path to Freedom (aqui).

Uma memória de Jonathan Franzen – O cérebro do meu pai (na Piauí).

Um disco para ouvir sempre – Bloodflowers, The Cure.

Uma pizzaria para voltar de vez em quando – Vica Pota.

Uma ortopedia meio demorada – Samaritano.

Uma programação – BBC HD.

‘O mapa e o território’, de Michel Houellebecq

Publicado na Folha de S.Paulo, 2012:

Há livros que parecem bons, mas não têm alma, e livros que são o contrário. Os de Michel Houellebecq estão mais próximos do segundo grupo, e O mapa e o território – que deu o primeiro Prêmio Goncourt ao autor – não foge à regra.

Por ‘alma’ entende-se uma abordagem que não adere à linguagem, às ideias e ao gosto dominantes em sua época. Houellebecq sempre conseguiu isso de forma paradoxal, com toques de ênfase, sarcasmo e agudez ensaística em meio à mão pesada dos enredos e a uma prosa entre o mecânico e o “informativo”, ambas características dos best-sellers.

Exemplos desse tom não faltam em O mapa e o território. “Seu trabalho nos últimos seis anos resultara em pouco mais de 11 mil fotos”, diz a narração sobre o protagonista, um artista plástico que contracena com celebridades do mundo real, inclusive o próprio Houellebecq, e termina envolvido num crime rocambolesco. “Zipadas em formato TIFF, com uma cópia JPG de baixa resolução, cabiam com facilidade em um disco rígido de 640 Gb, da marca Western Digital.”

À medida que a trama se desenvolve, porém, o que de início soa como pastiche de ficção barata, catálogo de galeria ou verbete da Wikipedia – origem das acusações de plágio que o romance sofreu – ganha um caráter mais ambicioso. O tema é a obsolescência do indivíduo num mundo pós-industrial, saturado de tecnologia e vazio. E que uniformiza o trabalho, o consumo, as relações amorosas, a arte.

Houellebecq não vê o fenômeno sob ótica nostálgica nem apocalíptica. A abordagem é híbrida, ao mesmo tempo melancólica e satírica, contundente sem ser moralista. As digressões sobre pintura, sexo, família, dinheiro, política e costumes, numa história que termina com a frase “o triunfo da vegetação é total”, soam tão irônicas e azedas quanto interessadas, vindas de alguém que gosta suficientemente do objeto para se dar ao trabalho de dissecá-lo.

Criar empatia nessa faixa intermediária, que não conta com muletas sentimentais nem ideológicas, não deixa de ser um feito. É o que dá ao leitor uma sensação incomum: a de estar diante de um texto que, a par de seus excessos e gratuidades,  jamais se deixa domesticar. “Fedia um pouco, embora menos do que um cadáver”, é como o autor descreve a si mesmo em determinada passagem. “As coisas poderiam ser piores, afinal”. Ou melhores, se Houellebecq fosse previsível a ponto de se preocupar com isso.

Fim de semana

Um disco – Here, Edward Sharpe & The Magnetic Zeros.

Um palestrante – Art Spiegelman.

Uma sequência ruim de uma série boa – Homens de preto 3.

Uma exposição – Madalena Schwartz no Frei Caneca.

Um livro – Festa no covil, Juan Pablo Villalobos (Companhia das Letras, 88 págs.).