Michel Laub

Mês: agosto, 2011

Egopress + ausência

1) O blog volta a ser atualizado em outubro. Mas continuo no twitter (@michellaub).

2) Agenda para as próximas semanas: Festival do Recife (26/8, 17h, mesa com Talles Colatino); Bienal do Rio (4/9, 14h, com Gonçalo Tavares e Carola Saavedra); Encontros de Interrogação do Itaú, São Paulo (8/9, 20h, com Ivana Arruda Leite, Maria Esther Maciel e Regina Dalcastagnè); Feira do Sesc/Curitiba (14/9, com Mariana Ianelli).

3) Também em Curitiba, na Biblioteca Pública do Paraná, dou uma oficina de ficção nos dias 12, 13 e 15 de setembro.

Links

– Quartos de criança pelo mundo (27 fotos): http://t.co/sX5jine

– Carta de Thomas Pynchon defendendo Ian McEwan de uma acusação de plágio: http://t.co/IcRQxUZ, via @cydlos

– Mario Sérgio Conti sobre como foi criar uma filha em Paris: http://t.co/pU8vhiG

– Cervantes, Diderot e pornografia na internet, por Caco Galhardo: http://t.co/mwvlwor

– João Ubaldo fala a Francisco Bosco sobre a Ilíada: http://t.co/AyNJQFM

– Esculturas submersas: http://t.co/20v004l, via @rbressane@zorzanelli

– 30 anos de imagens da Alemanha Oriental: ti.me/r4qZfA

– Christopher Hitchens sobre a Inglaterra e a violência: http://t.co/GelXhG3, via @rlevino

– Tronos, poleiros de ouro, espaço para camelos: como são decorados os jatinhos. http://t.co/fHYSeqF

– Faulkner sobre hóquei, EUA e o declínio dos esportes ao ar livre: http://t.co/opwnAki, via @ricardolombardi

– Documentário sobre jardineiro de SC que fez pacto com o espírito de um pirata: http://t.co/6lcM57z, via @dgdgd

‘No país dos homens’, de Hisham Matar

(Publicado na Folha de S.Paulo, 2007):

Histórias contadas por crianças em meio à guerra ou à opressão política costumam render por vários motivos. O principal é a contraposição entre pureza e brutalidade, recurso em geral obtido por meio de uma voz calculadamente ingênua, cujas lacunas acentuam um horror nunca explícito e, por isso mesmo, ainda mais presente. O equilíbrio não é sempre fácil, e é no caminho para consegui-lo que estão os méritos e defeitos de No País dos Homens (Companhia das Letras, 264 págs.), romance de estréia do americano de descendência líbia Hisham Matar.

O livro é narrado por Sulemein, um garoto de 9 anos, e o pano de fundo é a ditadura de Muammar Gaddafi. No verão de 1979, o pai do protagonista se envolve com um grupo de intelectuais de oposição e acaba preso. Com ingredientes autobiográficos, já que o pai de Hisham Matar passou por experiência semelhante, No país dos homens acompanha o processo de amadurecimento de Sulemein, dividido entre brincadeiras típicas da idade e sentimentos conflituosos relativos à tragédia familiar.

O principal problema da trama é que esse amadurecimento não se dá de modo contínuo e crescente, como seria praxe num romance de formação. A voz de Sulemein oscila demais entre uma extrema ingenuidade e uma consciência às vezes exagerada. Em certas passagens ele demonstra não entender, por exemplo, o porquê de os amigos de seu pai estarem sendo perseguidos; em outras, reproduz com exatidão diálogos em que adultos explicam em detalhes a situação da Líbia. Como o romance é narrado do futuro, como uma memória distante de infância, é difícil acreditar que o personagem lembrasse de todas aquelas palavras, com a conseqüente profundidade de seus raciocínios, e ao mesmo tempo não soubesse na época o que elas significavam.

À medida que a história avança, porém, fica claro que o propósito do autor não é apenas a denúncia da repressão ditatorial sob o filtro da doçura infantil. Ao tratar da relação com a mãe problemática, com o melhor amigo, com um mendigo da vizinhança e com um agente fantasmagórico do governo, a fala de Suleiman deixa de ser a de uma vítima passiva, que apenas assistiu a eventos terríveis, e se torna o registro de um indivíduo em transformação, rumo a algo que não sabe bem o que é, processo muito mais ambíguo e rico do que sugere a mera alegoria política.

Ou seja, Hisham Matar escapa do modelo a que seu romance parece se filiar – e no qual teria certa debilidade, por causa do problema de tom – para dar a ele uma dimensão mais original, para além do espaço e do tempo em que está situado. O horror de No País dos Homens não é só o da Líbia em 1979, mas também o que cada um é capaz de infligir aos outros e a si mesmo ao se tornar adulto. Para Sulemein, isso significa deixar de acreditar que “o inocente não tem motivo para ter medo”. Até porque ninguém é inocente, e todos agora parecem ter medo disso.

Fim de semana

Um filme – A árvore da vida, Terrence Malick.

Uma exposição – Steve Klein no MuBE.

Um disco – In your dreams, Stevie Nicks.

Outro disco – Slave ambient, War on drugs.

Uma peça – 45 minutos, dir. Roberto Alvim.

Um livro – Jakob von Gunten, Robert Walser (Companhia das Letras, 148 pás.).

Amizade, mentiras, etc.

(Publicado no blog da Companhia das Letras):

Ao contrário do que diz o senso comum, tudo o que o escritor quer é gostar dos livros de seus colegas. Frase a frase, parágrafo a parágrafo ele torce para que o texto lhe fale algo, para que não precise experimentar a sensação corrosiva de vergonha ao fazer um elogio hipócrita no bar. Claro que esse ainda é o melhor dos cenários — pior é mandar um email e deixar a mentira registrada para sempre no éter virtual, quando não na quarta capa do livro seguinte do amigo.

Conhecer o autor pessoalmente pode ser uma vantagem ou um problema. Vantagem porque é impossível separar o afeto que se tem pela pessoa da apreciação daquilo que ela escreve. Afinal, livros quase sempre são uma extensão do que somos: o encadeamento do texto imita o jeito como se pensa ou fala, as ideias são análogas às de quem as expõe, a prosa é indissociável de qualidades pessoais como o ouvido, o carisma e o humor. Por outro lado, estamos acostumados aos defeitos e fraquezas dos nossos amigos, e é difícil não notar as eventuais tentativas deles de parecerem mais inteligentes e charmosos do que são.

A questão se estende à boa ou má vontade que temos com um texto, o que muitas vezes é decisivo no veredicto sobre ele. Já ouvi um escritor dizer que um colega seria incapaz de escrever sobre o mundo contemporâneo porque tem mau gosto musical ou algo assim. Por trás do exagero ou chiste, é o tipo de avaliação que poderíamos fazer sobre alguém com pouca experiência, ou cuja conversa é enfadonha e banal. Há grandes autores que em sua vida eram a própria encarnação da banalidade, mas com quem lidamos no dia-a-dia a pergunta nunca deixa de ser: o que este cara tem para dizer que valha o meu tempo?

A história da literatura é cheia de avaliações curiosas de escritores em relação aos pares, próximos ou não. Muitas são causadas por inveja e mesquinharia — no Brasil não tem nada disso, sabemos —, mas também é fato que tal proximidade distorce o juízo. Para um lado e para o outro: gosto de encontrar piadas internas nos livros dos meus amigos, e digamos que haja dez delas num romance de 100 páginas. Apesar dos dez momentos de humor numa história bastante curta, o que sobe consideravelmente a sua cotação, eu poderia garantir por aí que se trata de uma história engraçada? Dá para ampliar o exemplo óbvio da piada interna e dizer o mesmo das referências — geográficas, culturais, sentimentais — que, sendo as mesmas para mim e para o autor, o que inclusive bagunça o jogo sempre divertido entre ficção e biografia, fazem com que minha relação com seu trabalho nunca seja a de um leitor comum.

No fundo, é uma contradição: alguns dos meus melhores amigos são ficcionistas, e muito da afinidade que temos vem justamente disso — porque enfrentamos problemas semelhantes, porque temos hábitos parecidos, porque em vários aspectos nossa trajetória teve e tem muitos pontos em comum. Ao mesmo tempo, o objeto e resultado dessa afinidade nunca será 100% visível. É preciso que seja, já que toda apreciação estética é necessariamente subjetiva? Do ponto de vista da moral pública, vamos chamar assim, com muitos escritores exercendo a crítica e fazendo resenhas dos colegas, seria melhor que sim. Mas do ponto de vista da amizade, talvez seja o contrário: melhor é acreditar, o que não é nada difícil dependendo do caso, que seus amigos são brilhantes e foi sorte sua ser aceito como igual por eles.

Egopress

1) Diário da queda é um dos finalistas do prêmio Zaffari & Bourbon, da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Aqui, a lista dos concorrentes.

2) Está nas bancas o número da revista Personnalité, do Itaú Personnalité. que ajudei a editar.

Fim de semana

Um filme – Melancolia, Lars von Trier.

Um livro – Beatriz e virgílio, Yann Martel (Rocco, 197 págs.)

Uma edição – Lolita, Vladimir Nabokov, com prefácio de Martin Amis (Alfaguara, 392 págs.).

Um filé ao alho e óleo + cebola frita em Porto Alegre – Santo Antônio.

Uma exposição – Glauco Rodrigues, Caixa Cultural Paulista.

Links

(@michellaub):

– Scott Fitzgerald e o alcoolismo: http://bit.ly/nm6NdK

– Americanos e a partida da Apollo 11: http://nyti.ms/yRq8O

– Joyce Carol Oates sobre escrever, caminhar e correr: http://nyti.ms/bxmWr

– Kurt Vonnegut sobre oficinas literárias: http://bit.ly/r50ZMF

– Galeria de arte sinistra: http://bit.ly/nAFHm4 , via @lordass

– Um doente de Alzheimer e sua família: http://ti.me/nmKQE2

– Uma casa com piscina na sala: http://bit.ly/lRhUcj

– Shakespeare na voz de um imitador de celebridades: http://bit.ly/owsb3D, via @ricardolombardi

– Invasão da Polônia e outras imagens de 1939: http://bit.ly/lJPfeW

– Chicago em fotos de Stanley Kubrick: http://bit.ly/gdQZjj , via @alexandrerodrig

– Entrevista com Martin Parr: http://urbout.co/k1NIvx

– Uma noite em São Paulo com Kurt Cobain e Courtney Love: http://tinyurl.com/3g5accb

Fim de semana

Um documentário – Filhos de João, Henrique Dantas

Outro documentário – Dzi croquetes, Tatiana Issa e Raphael Alvarez.

Uma exposição no Tomie Ohtake – Fotos da coleção da Telefônica.

Outra exposição no Tomie Ohtake – Louise Bourgeois.

Uma entrevista – J.G. Ballard na Paris Review (aqui).

Uma jukebox – Bar Bahia.

Stálin, um fuzilamento e uma lição de matemática

Outro trecho de Stálin: a corte do czar vermelho (ver post anterior):

“Em abril de 1937, a dra. Bronka Poskrióbicheva, a linda esposa de 27 anos do chefe de gabinete, telefonou a Stálin e pediu para encontrar-se com ele sozinha em Kuntsevo, aonde foi com seu melhor vestido (…). O marido não sabia de nada (…). Ela foi pedir a libertação de seu irmão Metálikov, o medico do Kremlin, que tinha um parentesco indireto com Trotski por meio de sua esposa (…). Stálin odiava as mlheres que imploravam por parentes, ainda que uma das tragédias da vida soviética de então fosse que as mulheres imploravam aos potentados pela vida de seus entes queridos, oferecendo tudo o que podiam, inclusive o corpo. A missão de Bronca fracassou (…) e ela ficou com medo de ser posta no mesmo saco dos trotskistas.

Antes de sua promoção para Moscou, Béria havia apalpado Bronka em Kuntsevo e ela lhe dera um tapa. ‘Não esquecerei isso’, disse ele. Mas Bronka não desistiu. A 27 de abril de 1939, telefonou a Béria e perguntou se poderia vê-lo para discutir o caso de seu irmão. Nunca mais foi vista.

Poskríobichev esperou até a meia-noite, então telefonou para a casa de Béria, que revelou que ela estava sob custódia, mas não discutiria o assunto. Pela manhã, sem ter dormido nada, Poskríobichev queixou-se a Stálin, que disse: ‘Não depende de mim. Não posso fazer nada. Somente o NKVD pode resolver’ (…). Stálin telefonou para Béria, que o lembrou das conexões trotskistas de Bronka. Os três se encontraram, provavelmente por volta de meia-noite de 3 de maio, quando Béria apresentou uma confissão que implicava Bronka. Poskríobichev implorou a Stálin para soltá-la, usando o argumento menos bolchevique (…): ‘O que vou fazer com minhas filhas? O que acontecerá com elas?’ (…)

‘Não se preocupe, acharemos outra mulher para você’, teria supostamente respondido Stálin. Isso era típico (…) do homem que ameaçara Krupskaia de que, se ela não obedecesse ao Partido, eles nomeariam outra pessoa para viúva de Lênin. Pelos padrões da época, Poskríobichev fez um estardalhaço, mas não podia fazer mais. Dois anos depois, quando os alemães se aproximavam de Moscou, Bronka foi fuzilada, aos 31 anos.

Disseram a sua filha Natália que ela tivera morte natural. Poskríobichev criou as filhas sozinho, com dedicação amorosa. Mantinha fotografias de Bronka por toda a casa. Quando Natália apontava para uma delas e dizia ‘mamãe’, seus olhos se enchiam de lágrimas e ele saía correndo da sala (…) Natália só [descobriu] que sua mãe foi fuzilada na escola, quando a filha do cantor Koslovski lhe contou. Ela soluçou no banheiro. Poskríobichev casou de novo.

A destruição de Bronka não afetou a relação dele com Stálin ou Béria: o Partido era justo. Stálin assumiu um interesse solícito pela filha de Bronka: ‘Como está Natacha?’, perguntava com frequência ao chefe de gabinete. ‘Está gorducha e doce?’ Anos depois, quando não estava conseguindo fazer a lição de casa, ela telefonou ao pai para pedir ajuda. Outra pessoa atendeu.

‘Posso falar com meu pai?’, perguntou ela.

‘Ele não está’, respondeu Stálin. ‘Qual é o problema?’ E ele resolveu as questões de matemática para ela.”

Stálin e a notícia da invasão alemã, 1941

Trecho de Stálin: a corte do czar vermelho, de Simon Sebag Montefiore (Companhia das Letras, 860 págs., tradução de Pedro Maia Soares):

“Stálin retirara-se para seu quarto quando Júkov telefonou para Kuntsevo.

‘Quem é?’, respondeu a voz sonolenta do general NKGB.

‘Júkov, chefe do Estado-Maior. Por favor, chame o camarada Stálin. É urgente!’

‘O quê? Agora? O camarada Stálin está dormindo.’

‘Acorde-o imediatamente’, disse Júkov ao oficial de plantão. ‘Os alemães estão bombardeando nossas cidades.’

Houve um silêncio. Júkov esperou pelo que parecia uma eternidade. Ele não era o único que estava tentando relatar a invasão a Stálin, mas os generais continuavam tão petrificados diante do próprio líder quanto dos alemães. Às 4h17 da manhã (horário russo), o comando do mar Negro telefonou a Júkov no Comissariado de Defesa para relatar um enxame de bombardeiros. Às 4h30, a frente ocidental estava na linha, às 4h40, o Báltico estava sob ataque. Por volta da mesma hora, o almirante Kuznietsov recebeu uma ligação de seu comandante em Sebastopol: o bombardeio alemão começara. Kuznietsov telefonou imediatamente para o Kremlin (…). Era para ser um segredo que Stálin morava em Kuntsevo, então o oficial respondeu: ‘O camarada Stálin não está aqui e não sei onde ele está’.

‘Tenho uma mensagem de extrema importância que devo transmitir com a máxima urgência ao camarada Stálin pessoalmente.’

‘Não posso ajudá-lo de forma alguma’, retrucou o oficial, e desligou. Kuznietsov ligou então para Timochenko, que, inundado por telefonemas, estava com medo de informar Stálin. Kuznietsov tentou todos os números de Stálin que possuía, mas sem sucesso, telefonou ao Kremlin de novo.

‘Solicito que informe ao camarada Stálin que aviões alemães estão bombardeando Sebastopol. É a guerra!’

‘Informarei à pessoa apropriada’. Alguns minutos depois, o almirante descobriu quem era essa ‘pessoa apropriada’: o fraco e de fala mansa Melenkov telefonou-lhe, perguntando com ‘voz insatisfeita e irritada’: ‘Você percebe o que está relatando?’ (…). Malenkov desligou e telefonou para Sebastopol a fim de conferir a história.

Timochenko não estava sozinho em seu gabinete. Mekhlis, ‘O Tubarão’, passou a noite ao lado dos generais. Tal como Malenkov, estava convencido de que não haveria invasão naquela noite. Quando o chefe de Artilharia antiaérea Vóronov chegou correndo, Timochenko estava tão nervoso que lhe deu uma caderneta e, de modo absurdo, ‘mandou que eu apresentasse meu relatório por escrito’, pois, se todos fossem presos por traição, ele seria responsável por seus crimes. Mekhlis ficou atrás dele e espiou por sobre seus ombros para verificar se estava escrevendo exatamente o que dissera. Depois obrigou-o a assinar o papel. Timochenko ordenou que as forças antiaéreas não reagissem; Vóronov percebeu que ‘ele não acreditava que a guerra havia começado’.

Tomochenko recebeu um telefonema do comandante-adjunto do Distrito Militar Especial Ocidental, Boldin, contando que os alemães estavam avançando. Timochenko mandou que não reagisse.

‘Como assim?’, gritou Boldin. ‘Nossas tropas estão recuando, as cidades estão em chamas, as pessoas estão morrendo…’

‘Ióssif Vissariónovitch acha que isso pode ser uma provocação de alguns generais alemães’. O instinto de Timochenko lhe dizia para persuadir outra pessoa a dar a notícia a Stálin. Perguntou a Budiony: ‘Os alemães estão bombardeando Sebastopol. Devo contar a Stálin ou não?’.

‘Informe-o imediatamente!’

‘Telefone para ele’, suplicou Timochenko. ‘Tenho medo.’

‘Não, você telefona’, retrucou Budiony. ‘Você é o comissário da Defesa!’ Por fim, Budiony concordou e começou a ligar para Kuntsevo. Timochenko, ansioso por dividir as responsabilidades, ordenou que Júkov também telefonasse para Stálin.”

Updike, Foster Wallace e estilo

Trecho de Como funciona a ficção, de James Wood (Cosac Naify, 228 págs., tradução de Denise Bottmann):

“É instrutivo ver bons escritores cometendo erros (…). Vejam John Updike no romance Terrorista. Na terceira página do livro, ele apresenta o protagonista, Ahmad, um fervoroso muçulmano de dezoito anos (…). As primeiras linhas são bastante corriqueiras. E então Updike quer tornar o pensamento teológico e faz uma transição canhestra: ‘Ele não vai crescer mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na outra. Se houver uma outra, um demônio interior murmura’. Parece muito improvável que um estudante refletindo sobre o quanto cresceu no último ano pense: ‘Não vou crescer mais, nesta vida nem na outra’. As palavras ‘nem na outra’ estão ali só para dar a Updike a oportunidade de discorrer sobre a ideia islâmica do paraíso. Estamos apenas na quarta página, mas qualquer tentativa de acompanhar a voz de Ahmad já ficou de lado: o fraseio, a sintaxe e o lirismo são de Updike (…). A penúltima linha é expressiva: ‘Em que Deus, conforme a nona sura do alcorão, eternamente se regojiza’ [grifo de Wood ]. (…) Updike não tem certeza de querer entrar na mente de Ahmad e, sobretudo, de nos fazer entrar na mente de Ahmad, por isso finca suas grandes bandeiras de autor em toda a área mental do personagem. E por isso precisa identificar a sura exata que menciona Deus, pois, se fosse Ahmad, ele saberia (…) e não precisaria se lembrar dela.

(…)

“Um escritor contemporâneo como David Foster Wallace (…) escreve sobre e de dentro dos personagens, e assim procede para explorar questões de linguagem mais gerais e abstratas (…). [Num] trecho do conto The suffering channel ele evoca o jargão emprobrecido da mídia de Manhatatan (…) A linguagem da narração (…) de Wallace é pavorosamente feia e dói por páginas a fio. Tchekhov (…) não [tinha] esse problema porque não enfrentava a saturação imposta à linguagem pelos meios de comunicação de massa. Mas, nos Estados Unidos, as coisas são diferentes: Dreiser em Sister Carie (publicado em 1900) e Sinclar Lewis em Babbit (1922) têm o cuidado de reproduzir na íntegra os anúncios, as cartas comerciais e os folhetos de divulgação que querem tratar literariamente.

Assim se inicia a perigosa tautologia inerente ao projeto literário contemporâneo: para evocar uma linguagem degradada (a linguagem degradada que o personagem usaria), teríamos de nos dispor a apresentar essa linguagem mutilada no texto, e talvez degradar inteiramente nossa própria linguagem. Pynchon, DeLillo, David Foster Wallace são, em certa medida, herdeiros de Lewis (provavelmente apenas neste aspecto), e Wallace leva seu método de imersão total aos extremos da paródia (…). Auden apresenta bem o problema geral no poema The novelist (…): o poeta pode arremeter como um hussardo, mas o romancista precisa ir mais devagar, precisa aprender a ser ‘comum e desajeitado’ e tem de ‘se tornar a plenitude do tédio’. Em outras palavras, a tarefa do romancista é encarnar, tornar-se aquilo que ele descreve, mesmo quando o assunto em si é baixo, vulgar, tedioso. David Foster Wallace é muito bom em encarnar a plenitude do tédio.

(…)

Assim, existe uma tensão fundamental nos contos e romances: podemos reconciliar as percepções e a linguagem do personagem? Quando o autor e o personagem estão integralmente fundidos, como na passagem de Wallace, temos, por assim dizer, ‘a plenitude do tédio’ – a linguagem corrompida do autor apenas mimetiza uma linguagem corrompida que existe na realidade, que todos nós conhecemos até demais e da qual queremos desesperadamente fugir. Mas, se o autor e o personagem ficam muito distantes, como na passagem de Updike, sentimos o hálito frio de um afastamento atravessar o texto, e começamos a nos incomodar com os esforços ‘super literários’ do estilista. Updike é um exemplo de esteticismo (o autor se intromete); Wallace é um exemplo de aparente antiesteticismo (o personagem é tudo); mas ambos, na verdade, são espécimes do mesmo esteticismo, que no fundo é a exibição forçada de estilo.”