Num texto célebre sobre uma pintura de Paul Klee, Walter Benjamin compara a história a um anjo que apenas olha para trás, registrando com impotência os destroços do progresso. A ideia possivelmente inspira um trecho de “Perestroika”, segunda parte da premiada peça Angels in America, de Tony Kushner, no qual um anjo tenta fazer o contrário: congelar ciência, costumes e fluxos migratórios porque isso tudo teria ido “longe demais”, gerando apenas “campos de matança sobre os corpos dos mortos” (Theatre Communications Group, 160 págs.).
Angels in America é de 1991, ano em que seu assunto de fundo – a epidemia de aids nos Estados Unidos – era o mais quente possível, com o número de mortes no auge assim como o estigma em torno das vítimas. Claro que a fala do anjo é irônica, uma utopia regressiva que exacerba o discurso puritano para denunciá-lo, mas a peça é mais complexa do que sugere essa passagem algo panfletária, em cima de um alvo fácil para leitores progressistas. O efeito político obtido por Kushner é, antes de tudo, um efeito de linguagem: ele nasce de uma alternância peculiar de tons, que vão do bíblico ao mundano, do lírico ao cômico de extração gay/judaica.
Nesse sentido, e embora haja todo um panorama de época nas falas de personagens representativos da Nova York dos 1980, o verdadeiro caráter documental do trabalho de Kushner é estético: a coragem, que se tornou tão rara nas décadas seguintes, de não deixar que a arte vire mero instrumento – que perca sua razão de ser ao se confundir com ação social, pregação partidária ou autoajuda, mesmo quando está do lado certo nas guerras da cultura contra a barbárie.
Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 2/6/23, sobre Angels in America, Ao Amigo Que Não Me Salvou a Vida (Hervé Guibert) e Meu Irmão, Eu Mesmo (João Silvério Trevisan). Íntegra aqui.