A data da primeira entrada dos Diários de Andy Warhol é 27 de novembro de 1976, uma quarta-feira. A da última é 17 de fevereiro de 1987, uma terça, cinco dias antes da morte do artista americano. Em pouco mais de dez anos, o que iniciou como mera anotação de encontros e eventos, com a listagem dos respectivos gastos para controle de Imposto de Renda, virou um documento sui generis sobre a cultura do último meio século (L&PM, 851 págs, organização/seleção de Pat Hackett e tradução de Celso Loureiro Chaves).
Para chegar a essa conclusão, é preciso atravessar uma certa aridez do livro. À primeira vista, nele há apenas um registro em tom menor, composto de impressões ligeiras e adjetivadas. A agudez possível emerge de uma frase lapidar aqui, uma expressão venenosa ali, em meio a muitos momentos repetitivos, irrelevantes à sombra do tempo: “dedos muito delicados (…), do mesmo tamanho que os meus e metade da largura” (sobre Miles Davis); “calças hindus de pele de leopardo (…), parecia um domador de circo” (sobre Rainer W. Fassbinder); “é chato, um horror (…), mas aí vi o pessoal da imprensa se aproximando (…) e disse que tinha gostado demais” (sobre o filme “O Fundo do Coração”, de Francis F. Coppola).
É comum ver Warhol como figura visionária, que fundiu influências – de Marcel Duchamp a Marshall McLuhan – na construção de uma obra que, desde os anos 1960, por sua força e abrangência no retrato irônico/fascinado da fama e do consumo, antecipou a dinâmica do atual sistema de redes sociais e celebridades. Mas a motivação que gerou tal legado, presente em pinturas, fotografias, nos filmes produzidos no estúdio The Factory, na edição da revista Interview, segue motivo de disputa cultural. Se os Diários podiam soar frívolos em 1989, ano em que foram publicados, em 2022 servem para iluminar um debate mais amplo sobre identidade.
Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 2/4/2022. Íntegra aqui.
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