Michel Laub

Mês: maio, 2018

Cistos e borboletas

Georges Didi-Huberman em Que Emoção! Que Emoção? (Editora 34, 92 págs., tradução de Cecília Ciscato):

“Faz alguns anos, meu pai morreu. É claro que eu estava muito emocionado. Acho, porém, que essa tristeza era ainda ‘maior’ que a tristeza solitária e pessoal de perder meu pai. Na hora de ir ao necrotério ou de organizar o enterro, por exemplo, tive que tomar decisões e adotar certas atitudes, executar gestos que não diziam respeito apenas a mim mesmo. Tive, portanto, que agir em sociedade – a começar pelo meu comportamento diante do meu próprio filho, ou de minha irmã, ou dos amigos do meu pai –, a despeito de toda a solidão que houvesse em minhas emoções. (…). Esses gestos são como fósseis em movimento (…). Eles sobrevivem em nós, ainda que sejamos incapazes de observá-los em nós mesmos. Darwin sem dúvida tinha razão ao dizer que as emoções são gestos primitivos. Mas, na sua ideia de ‘primitivo’, ele via somente a natureza (daí a relação estabelecida entre os chimpanzés que grunhem e as crianças que choram). O sentido de ‘primitivo’ foi melhor entendido no âmbito das ciências humanas a partir do momento em que os etnólogos e os sociólogos falaram das emoções sob o ângulo de uma história cultural.”

“Diante dos diferentes ritos em que as emoções coletivas se manifestam – e os enterros são bons exemplos disso –, o grande etnólogo Marcel Mauss falou de uma ‘expressão obrigatória dos sentimentos’ (…) Uma emoção que se expressa segundo certas formas coletivas seria menos intensa e sincera que outra? (…) Não, responde Marcel Mauss (…). Trata-se de emoções verdadeiras, mas elas passam, elas precisam passar, por sinais corporais – gestos – reconhecíveis por todos: ‘Todas essas expressões dos sentimentos do indivíduo e do grupo – coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória – são mais do que simples manifestações, são signos de expressões inteligíveis. Numa palavra, são uma linguagem. Esses gritos são como frases e palavras. É preciso pronunciá-los, mas, se é preciso pronunciá-los, é porque todo o grupo pode entende-los (…).’ Uma emoção que não se dirija a absolutamente ninguém, uma emoção totalmente solitária e incompreendida, não será sequer uma moção – um movimento –, será somente uma espécie de cisto morto dentro de nós mesmos (…).”

“Um chinês chora, mas não chora pelas mesmas coisas, nem nos mesmos momentos; as diferenças culturais são consideráveis. (…) O que importa, como na frase de Marcel Mauss, é a maneira como transmitimos as emoções aos outros, por meio de gestos, de mímicas, e segundo certas regras. Nesse sentido, a emoção é algo totalmente adquirido. Basta comparar os rituais de luto, eles são muito diferentes de um canto a outro do planeta, e não são sempre ‘tristes’ no sentido como nós o entendemos. No Ocidente, após um enterro, acontece de as pessoas se reunirem para comer e até mesmo celebrar. Nos Bálcãs, quando se reúnem para comer após um enterro, as pessoas às vezes fazem verdadeiras festas, cantam, tocam músicas e dançam de um jeito que pode ser chocante para nós (…).”

“A filosofia opõe a essência e a aparência, dizemos que a aparência é sem importância e que a essência é coisa séria. Eu não concordo com essa hierarquia filosófica, acredito que aquilo que se manifesta é um objeto de estudo tão sério quanto possível. Talvez você me diga que, se eu me interessar somente pelas aparências, não serei um filósofo, e eu talvez aceite sua objeção. De qualquer forma, eu não sei o que ‘é’ a emoção, eu não busco nunca o que ela é em absoluto. Existem duas maneiras de dizer que uma coisa ‘é’. Você pode dizer ‘eu estou emocionado’. Se você diz isso, fatalmente estará falando de um breve momento, pois hoje à noite você estará menos emocionado e amanhã já não será mais a mesma emoção. Depois, há o grande ‘é’ dos filósofos (…), o ‘é’ geral. Sócrates é bom em geral? Aristóteles respondia a essa pergunta com precisão: ‘Eu não posso saber se Sócrates é bom enquanto ele estiver vivo’, pois de uma hora para outra ele pode se tornar mau (…).  Eu prefiro que Sócrates continue vivo, que a borboleta continue voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para dizer que a borboleta ‘é’ – decididamente – azul. Prefiro não ver completamente a borboleta, prefiro que ela continue viva: essa é a minha atitude quanto ao saber. Eu vejo [algo] aparecer e tento pôr meu olhar em palavras, em frases. Mas esse é um olhar tão frágil e furtivo quanto são as minhas frases (…). É inevitável que a borboleta desapareça, já que é livre para ir aonde quiser e não precisa de mim para viver sua liberdade. Ao menos eu terei apanhado em pleno voo, sem guardar apenas para mim, um pouco de sua beleza.”

Fim de semana

Uma reportagem – Allan de Abreu sobre o PCC, na Piauí.

Um livro de provocação – Manifesto Contrassexual, Paul B.Preciado (N-1, 224 págs.).

Um documentário médio/bom – The Reagan Show, Sierra Pettengill e Pacho Velez.

Um médio/médio – A Verdade sobre Marlon Brando, Stevan Riley.

Um disco – Deus é Mulher, Elza Soares.

Fim de semana

Um livro – Que emoção! Que emoção?, Georges Didi-Huberman (34, 72 págs.).

Um artigo – A relação entre liberalismo econômico e fascismo (aqui).

Uma exposição – Conflitos brasileiros, IMS.

Uma montagem irregular – Extinção, Denise Stocklos.

Uma série ok  – Bobby Kennedy para Presidente, Dawn Porter.

Solidão depois das migalhas

Natalia Ginzburg em Léxico Familiar, de 1963 (Companhia das Letras, 254 páginas, tradução de Homero Freitas de Andrade):

“O pós-guerra era um tempo em que todos pensavam ser poetas, e todos pensavam ser políticos; todos imaginavam que fosse possível e necessário antes fazer poesia de tudo, depois de tantos anos em que o mundo pareceu ter emudecido e petrificado, e a realidade fora olhada como que através de um vidro, numa vítrea, cristalina e muda imobilidade. Romancistas e poetas, nos anos do fascismo, tinham jejuado, por não existirem ao redor muitas palavras que fosse permitido usar; e os poucos que ainda tinham usado palavras escolheram-nas com todo o cuidado no magro patrimônio de migalhas que ainda restava. No tempo do fascismo, os poetas viram-se obrigados a exprimir somente o mundo árido, fechado e sibilino dos sonhos. Agora, havia de novo muitas palavras em circulação, e a realidade parecia de novo ao alcance da mão; por isso, esses antigos jejuadores puseram-se a vindimar com deleite. E a vindima foi geral, porque todos tiveram a ideia de participar dela; e determinou-se uma confusão de linguagem entre poesia e política, que apareceram misturadas. Mas depois aconteceu que a realidade se revelou complexa e secreta, indecifrável e obscura não menos que o mundo dos sonhos; e revelou-se ainda situada do outro lado do vidro, e a ilusão de ter quebrado esse vidro revelou-se efêmera. Assim, muitos logo se retraíram desanimados e desencorajados; e tornariam a mergulhar num jejum amargo e num silêncio profundo. Desse modo, o pós-guerra foi triste, cheio de desânimo após as alegres vindimas dos primeiros tempos. Muitos se apartaram e se isolaram novamente no mundo dos seus sonhos, ou num trabalho qualquer que desse para viver, um trabalho assumido ao acaso e depressa, e que parecia pequeno e cinzento depois de tanto clamor; de qualquer modo, todos esqueceram aquela breve, ilusória coparticipação na vida do próximo. Por muitos anos, decerto, ninguém praticou mais o próprio ofício, mas todos acreditaram que podiam e deviam praticar mil outros ao mesmo tempo; e muito tempo se passou antes que cada um retomasse sobre os ombros o próprio ofício e aceitasse seu peso e a fadiga cotidiana, e a solidão cotidiana, que é o único meio que temos de participar da vida do próximo, perdido e espremido numa solidão igual.”