Michel Laub

Mês: julho, 2014

Karl Ove Knausgard dá uma real sobre poesia, mentiras etc.

Trecho de Um outro amor (Companhia das Letras, 585 págs., tradução de Guilherme da Silva Braga):

“Bastava abrir um livro e ler, e se os poemas se revelassem você os merecia, senão você não os merecia. Ser uma das pessoas a quem os poemas não se revelavam me perturbou em especial por volta dos meus vinte anos, quando eu ainda era cheio de ilusões a respeito de quem eu poderia ser. (…). Havia três maneiras possíveis de se comportar em relação a isso. A primeira era reconhecer a situação e aceitá-la. Nesse caso eu seria um homem absolutamente normal que levaria uma vida absolutamente normal e encontraria o significado dela onde quer que eu estivesse, e não em outro lugar (…) A segunda era negar tudo, dizendo para mim mesmo que o potencial existia e simplesmente não tinha sido realizado ainda, e assim viver uma vida de literatura, talvez como crítico, talvez como professor universitário, talvez como escritor, pois era totalmente possível se manter nesse mundo sem que a literatura jamais se revelasse. Era possível escrever uma tese inteira sobre Hölderin, por exemplo, descrevendo os poemas, discutindo os temas abordados e a maneira como se manifestavam na sintaxe, no vocabulário, no emprego de imagens, era possível escrever sobre a relação entre os elementos gregos e cristãos, sobre o papel da natureza nos poemas, sobre o papel do clima, ou ainda sobre as relações entre os poemas e a realidade político-histórica em que tinham sido escritos (…). Era possível escrever sobre a relação com os outros idealistas alemães, Goethe, Schiller, Hegel, Novalis, ou ainda sobre a relação com Píndaro nos poemas tardios. Era possível escrever sobre as traduções pouco ortodoxas de Sófocles, ou ainda ler os poemas à luz do que Hölderin tinha escrito acerca da própria poética em correspondências. Também era possível ler os poemas e contrastá-los com a interpretação oferecida por Heidegger e Adorno em função da história de Hölderin. Também era possível escrever sobre toda a história da recepção, ou sobre a história da tradução. Tudo isso era possível sem que os poemas de Hölderin jamais se revelassem. O mesmo podia ser e naturalmente era feito com todos os outros poetas. Também era possível, com uma certa disposição para o trabalho árduo, escrever poemas próprios mesmo sendo uma das pessoas a quem a poesia não se revelava; a diferença entre um poema e um poema que apenas parece ser um poema é percebida somente por um poeta. Entre esses dois métodos, o primeiro, a aceitação, era o melhor, mas também o mais difícil. O segundo método, a negação, era o mais fácil, mas também era o menos confortável, porque a revelação de que tudo o que se fazia não tinha valor nenhum também estava muito próxima. E uma vida literária baseia-se justamente na busca pelo valor. O terceiro método, que consistia em abandonar toda essa problemática, era portanto o melhor. Não existem coisas elevadas. Não existem revelações privilegiadas. Nada é melhor ou mais verdadeiro do que qualquer outra coisa. O fato de que os poemas não se revelavam para mim não queria necessariamente dizer que eu era mais baixo do que ninguém, ou que meus escritos teriam necessariamente um valor menor. As duas partes, tanto os poemas que não se revelavam como os meus escritos, eram fundamentalmente a mesma coisa, ou seja, texto. Se meus escritos fossem mesmo piores, o que obviamente eram, não seria correto afirmar que esse era o resultado de uma situação irreparável em que me faltava alguma coisa, mas apenas de uma situação que podia se alterar através de trabalho árduo e do acúmulo de experiências. Até certo ponto, é evidente que conceitos como talento e qualidade continuavam sendo incontornáveis, porque afinal as pessoas não escrevem todas com o mesmo nível de desenvoltura. O mais importante era que não existisse um abismo, que não houvesse nada intransponível, entre os que tinham e os que não tinham; entre os que viam e os que não viam. Em vez disso, era apenas uma questão de gradação contida em uma mesma escala. Era um pensamento reconfortante [que] tinha reinado soberano na crítica artística e em círculos universitários desde a metade dos anos 1960 até hoje. Os conceitos que eu tinha adotado e que eram uma parte tão óbvia de mim que eu nem ao menos sabiam que eram conceitos, e que portanto eu não poderia expressar mas apenas sentir, e que no entanto tinham me norteado mesmo assim, eram os conceitos do romantismo na forma mais pura, ou seja, conceitos antiquados. As poucas pessoas que tinham uma abordagem séria frente ao romantismo ocupavam-se dos elementos que mantinham relações com os conceitos de nossa época, como a fragmentação e a ironia. Mas para mim a questão não era o romantismo em si – se eu sentia afinidade em relação a uma época qualquer era pelo período barroco, cheio de espaços, alturas e profundezas vertiginosas, ideias sobre a vida e o teatro, os espelhos e o corpo, a luz e a escuridão, a arte e a ciência, o que exercia uma atração mais forte sobre mim –, mas o sentimento que eu tinha de estar longe do essencial, longe do mais importante, do aspecto mais profundo da existência. Se esse era um sentimento romântico ou não, para mim não tinha a menor importância. Para aplacar a dor que essa nova situação provocava eu me defendi usando as três maneiras possíveis, e por longos períodos cheguei a acreditar nelas, em especial na última. Tentei me convencer de que a ideia de que a arte era o lugar onde ardiam as chamas da beleza e da verdade, o último lugar onde a vida podia mostrar o verdadeiro rosto, não passava de um equívoco. Mas volta e meia ela ressurgia. Não como um pensamento, mas como um sentimento imune a qualquer tipo de argumentação. Mas eu sabia muito bem que era tudo mentira, que eu estava enganando a mim mesmo.”

Fim de semana

Um filme – Até o fim, J.C. Chandor.

Um documentário – A linha fria do horizonte, Luciano Coelho.

Uma entrevista – Goulart de Andrade no Roda Viva (goo.gl/QvqxBt)

Um disco – Forgetting the present, Remember Remember.

Uma exposição – Leonilson, Galeria Superfície.

Como (não) ler os clássicos

A vida é curta demais para ler “História da Literatura Ocidental sem as Partes Chatas”, da americana Sandra Newman, que foi tema da Ilustrada no último sábado. A vida pode ser longa demais, porém, e certas polêmicas literárias acabam inevitavelmente se repetindo.

Texto publicado na Folha de S.Paulo, 18/7/14. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um livro – Um outro amor, Karl Ove Knausgard (Companhia das Letras, 585 págs.).

Uma conversa – Karl Ove Knausgard e Jeffrey Eugenides (http://goo.gl/82hjDX)

Um dossiê – Racionais Mc’s na Cult.

Um galeto de R$ 13 em Porto Alegre – Santa Helena.

Um bar – Antique.

Livros brasileiros bons e recentes – trechos

F, de Antonio Xerxenesky (Rocco, 239 págs.) – “Eu não sabia de nada em 1985, no dia em que o telefone tocou, no dia em que alguém que nunca saberei quem é, uma dessas sombras fugazes que só podem ser vistas em dias nublados e que, ainda assim, governam nosso mundo, encomendou a morte de Orson Welles.”

A vez de morrer, de Simone Campos (Companhia das Letras, 256 págs.) – “Quando mergulhava na piscina, os olhos estavam fechados. E aí vinha o pensamento: E se um dia eu abrir os olhos embaixo d’água e não vir o tanque azul-claro forrado de azulejos, e sim aquela turbidez ardida e verde do mar? O que impedia isso? Piscinas às vezes ficavam verdes se ninguém cuidava delas. Era água, era tudo água. E mesmo de olho fechado. Eu podia mergulhar aqui, levantar a cabeça e emergir em alto-mar — “emergir” recém-aprendido de Sinbad, o marujo; onde também aprendera que se fosse parar em alto-mar ninguém poderia salvá-la. O que impedia isso? Que uma pessoa sumisse, desaparecesse da existência, fosse tragada pela terra? Nada. A não ser a presença de alguém, que, como nos filmes, flagraria o fenômeno paranormal e contaria para as pessoas, que não acreditariam nela. Mas logo outras coisas inexplicáveis começariam a acontecer e então as pessoas, arrependidas, dariam ouvidos ao desacreditado. Acontecia sempre em cidades pequenas.”

O professor, Cristovão Tezza (Record, 237 págs.) – “Um dos poucos prazeres que me restam, senhores, uma toalha felpuda, tenho apenas duas delas, e às vezes calham de sumir (…) durante semanas (…) – uma breve piadinha para aquecer sua conversa, pois hoje tomei um banho especial para esta cerimônia, mas esqueci da toalha, o que obrigou este corpo decrépito, na sua horrenda desproporção de volumes, ossos, pele, barriga, a sair pelado pela casa atrás da toalha felpuda, e ele quase esbarrou em Dona Diva (…) que sem sorrir, olhos enviesados em direção à parede, para que não corressem nenhum risco, lhe estendeu justamente a toalha (…) – o momento em que ele pela primeira vez sentiu a dimensão social da velhice, aquela sutil fronteira do tempo em que a vergonha, o sexo, até mesmo o termômetro do pudor desaparecem e nos transformamos em seres, e ele sopesou a palavra, olhando para o alto, indagativo, apenas um ser.”

Ensaio sobre o entendimento humano, de Caetano Galindo (Biblioteca Paraná, 88 págs) – “Naquela situação, o grande escritor, quase proverbialmente tímido, se saiu com galhardia (Virou folclore entre os alunos da universidade e, posteriormente, depois que a transcrição do evento vazou para a internet, já sem itálico, entre leitores urbi et orbe, o momento em que ele declarou que, apesar de saber que a etiqueta que rege esse tipo de eventos pedia que ele periodicamente erguesse os olhos da folha de papel para dirigir ligeiros olhares a seu público enquanto lia seus fragmentos – numa demonstração que reconhecia servir como manifestação fática e, simultaneamente, ter certa função solidária, por minimizar, diríamos nós, o anatopismo que é a leitura em voz alta de literatura romanesca concebida original e finalmente para leitura silenciosa – era incapaz de fazê-lo [levantar os olhos da folha para etc.] sem perder irremediavelmente sua localização no texto que lia e que, assim, ver-se-ia obrigado a fechar os olhos [metáfora] para essa constrição sem que, no entanto, deixasse de estar [verbatim] agudamente consciente da presença de seu público [Risos]) e criatividade.”

Biofobia, de Santiago Nazarian (Record, 239 pás.) –“André nunca tivera paciência em ver as entrevistas da mãe quando ela estava viva. O mesmo que já ouvira tantas vezes. O que devia ter aprendido em casa, na mesa do jantar. Era estranho, porque para ela parecia que a literatura vinha em primeiro lugar, e se ele se negava a conhecer a escritora, nunca poderia conhecer realmente a mãe. Ter filhos, para ela, fora como uma oficina de criação. ‘Não é possível entender a vida realmente sem ter filhos’, dizia ela em determinado ponto. Então extraía traços de maternidade, de seus filhos, para seu próximo romance. André não precisava ler. ‘E se alguns de seus filhos quisesse seguir a mesma carreira que você?’, perguntava o entrevistador. A mãe riu. ‘Bem, meu filho mais próximo de mim, com quem eu mais me identifico, tem problemas mentais. Acho que o máximo que ele conseguiria escrever seriam microcontos.’ O entrevistador riu, um pouco constrangido. ‘Ele mora com você?’ ‘Hum… na verdade eu o mantenho preso no porão da minha casa. E o alimento com sardinhas.’ O entrevistador dessa vez riu abertamente, certo de que ela fazia uma piada. André estremeceu com a conversa e a televisão saiu novamente do ar.”

Fim de semana

Um livro – A lição do mestre, Henry James (Grua, 120 págs.).

Uma reestreia no cinema – Monty Python e o sentido da vida.

Um documentário difícil – Unhung Hero, Brian Spitz.

Um disco de 1973 – L’Apocalypse des animaux, Vangelis.

Uma reportagem – André Barcinski sobre covers e “falsos gringos” na música brasileira, na Piauí.

‘Grande Hotel Budapeste’, de Wes Anderson

Hipóteses para explicar o sucesso dos filmes de Wes Anderson: 1) porque eles são bons; 2) porque são bons ao imitar algo que não seria “bom” segundo os parâmetros correntes; 3) porque percebemos a sutileza do item 2 fingindo que estamos tratando do 1, e nossos amigos fazem o mesmo, e essa piada interna em cima da piada externa nos faz sentir inteligentes e cultivados.

“Grand Budapest Hotel”, seu mais recente trabalho, embaralha um pouco as explicações. É a reação 3, a princípio, que nos faz acompanhar com interesse as peripécias mirabolantes de um concierge (Ralph Fiennes), seu ajudante (Tony Revolori), idosas lúbricas e uma família cheia de vilões num país fictício entre o que parecem ser as duas guerras mundiais.

Publicado na Folha de S.Paulo, 28/3/2014. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição – Iberê Camargo, CCBB.

Um livro – Dez de Dezembro, George Saunders (Companhia das Letras, 248 págs.).

Uma série média com tema bom – Suits.

Uma cinebio média com personagem bomPhil Spector, David Mamet.

Outra – Tina, Brian Gibson.