Toda vez que surge um tabu na arte, surge também uma transgressão. Sempre penso nisso quando ouço críticos implicando com o uso do off (ou do voice over) no cinema. Segundo a teoria, a voz acima ou fora da cena é uma espécie de muleta, um atalho vulgar para roteiristas/diretores que deveriam preferir a sofisticação dos recursos visuais – ou então a dramaturgia das falas dos atores, que só funcionaria acompanhada pela expressividade dos seus gestos.
Uma das minhas graphic novels preferidas, Fun Home, da americana Alison Bechdel (Todavia, 234 págs, tradução de André Conti), pode ser lida como uma resposta a esse clichê. A trama, sobre a relação tumultuada da autora com o pai e a própria sexualidade, é dividida entre os desenhos e longas e frequentes legendas externas aos balões de diálogo, o que no universo dos quadrinhos equivaleria ao off/voice over de um filme.
Bechdel sabe, no entanto, que a questão não é o uso do recurso xis ou ípsilon em si. Uma legenda pode ser apenas reiteração ou oferecer ao leitor uma nova camada de sentido. Em Fun Home há uma variação constante entre gravidade e leveza, muitas vezes na mesma cena. Quando o desenho flagra a banalidade do cotidiano, por exemplo, o texto a colore com citações de alta literatura. Quando o texto descreve momentos trágicos, o traço sugere uma ironia carinhosa em cima de personagens doces.
Fun Home é uma das referências que me vieram à cabeça ao ler Bezimena, de Nina Bunjevac (Zarabatana, 224 págs., tradução de Claudio R. Martini). À semelhança do livro de Bechdel, a história parte de um componente biográfico sombrio, exposto pela autora num posfácio. Em 1988, aos 15 anos, na cidade sérvia de Aleksinac, durante a ascensão do nacionalismo que desaguaria na Guerra da Bósnia (1992-1995), ela sofreu uma tentativa de estupro com a conivência (ou o auxílio ativo) de uma colega de escola.
Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 21/8/2020. Íntegra aqui.
Curtir isso:
Curtir Carregando...