O que um romance político pode oferecer num país tão saturado de narrativas políticas? Há várias maneiras de enfrentar o problema, com suas óbvias gradações de intensidade e resultados. Uma delas é a aposta no discurso enviesado, mais estético do que sociológico, em que nas frestas de uma história individual enxergamos relances do que somos coletivamente.
É o caso de Cancún, estreia no gênero do carioca Miguel Del Castillo (Companhia das Letras, 166 págs.). Enquanto lida com a gravidez da mulher e a morte do pai, figura misteriosa envolvida com lavagem de dinheiro na cidade que dá título ao livro, um protagonista por volta de 30 anos rememora a juventude de classe média alta no Rio dos anos 1990: a rotina na escola, a inadequação da puberdade, a experiência com um grupo de estudantes que frequentava uma igreja evangélica.
Com eventuais traços autobiográficos, o livro junta pontas dramáticas diversas sob um único guarda-chuva: o de uma história de fragilidade masculina, de busca por uma afirmação acidentada que tem ressonâncias não apenas internas, relativas ao personagem. É nesse ponto que surge a política, apenas sem engajamento literal. Na realidade da ficção, e no modo como ela espelha a realidade aqui de fora, iluminam-se mecanismos de pertencimento social – via instituições como igreja e família – com nuances mais delicadas do que sugeririam acusações diretas de classe e gênero.
Se Cancún procura a sutileza, Marrom e Amarelo (Alfaguara, 168 páginas) é um soco no leitor. Décimo terceiro título do gaúcho Paulo Scott, seu enredo usa um expediente cronológico semelhante ao de Castillo: partir de um gatilho ocorrido na vida adulta do narrador – a prisão de sua sobrinha num protesto de estudantes – para revisitar um passado incômodo. No caso, o de um sujeito visto como branco enquanto era criado ao lado do irmão negro na Porto Alegre dos anos 1980.
Diferentemente de Cancún, em Marrom e Amarelo a política tem expressão ficcional aberta. Scott faz com que ela grite na trama, como elemento constante e corrosivo das relações íntimas e públicas. Seu narrador é um antigo militante de esquerda que integra a comissão de um governo distópico encarregada de discutir as cotas raciais no país. Os debates burocráticos/idealistas/equivocados de Brasília contrastam com a violência simbólica e real que o personagem sempre enxergou – e continuará enxergando quando, ao tentar ajudar a sobrinha, mais uma vez constatar a simbiose entre a discriminação no dia-a-dia da sociedade e a discriminação oficial de polícia e justiça.
Trecho inicial de texto publicado no Valor Econômico, 13/9/2019. Íntegra aqui.
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