Um dos melhores romances que saíram no Brasil ano passado foi Austerlitz, de W.G.Sebald (Companha das Letras, 287 págs.). Pouco a acrescentar ao que a crítica disse na época sobre a construção do livro, sua mescla de ficção e ensaio e o efeito ao mesmo tempo irônico e melancólico das fotografias intercaladas à história – ainda mais agudo do que no agora relançado Os emigrantes (Companhia das Letras, 240 págs.).
Apenas um adendo sobre comparação que tem sido feita entre Sebald e Thomas Bernhard: é fato que 1) ambos usam narradores meio ausentes da cena, que quase se limitam a reproduzir o pensamento de terceiros, o que gera aquele efeito bizarro e cômico da sobreposição do “disse fulano” com o “disse beltrano”; 2) há em ambos a ambição de nomear exaustivamente as coisas num tempo em que a história européia parecia ter esgotado sua capacidade de produzir catástrofes, o que os coloca na mesma linhagem temática, vamos dizer assim.
Mas também é fato que existe uma diferença de tom entre essas vozes. A de Sebald é para fora, generosa, nunca deixando de oferecer ao leitor o deleite de suas imagens, metáforas e multiplicidade vocabular, trazendo uma espécie de beleza para passagens que no fundo estão tratando de algo terrível:
“Onde antes havia sido chão firme, onde passavam estradas, onde pessoas haviam morado, raposas haviam corrido pelo campo e pássaros de toda espécie haviam voado de arbusto em arbusto, agora não havia nada mais que espaço vazio, e no fundo dele pedras e cascalho e água estagnada, intocada até mesmo pelo movimento do ar. As silhuetas das centrais elétricas nas quais ardia o linhito flutuavam como navios na escuridão, prédios cor de cal com a forma de paralelepípedos, torres de resfriamento com coroas dentadas, chaminés vertiginosas, sobre as quais plumas de fumaça imóveis pairavam brancas contra as cores malsãs que estriavam o céu ocidental. Apenas no pálido lado noturno do firmamento apareceram algumas estrelas, luzes fuliginosas e fumarentas que se extinguiam uma após a outra, deixando atrás de si escaras nas órbitas que sempre trilharam. Ao sul, em um vasto semicírculo, erguiam-se os cones dos vulcões extintos da boêmia, que no meu pesadelo eu desejava que entrassem em erupção e cobrissem tudo ao redor com poeira preta.”
Já Bernhard, ao contrário, mais diz do que mostra, mais declara do que sugere. Aparentemente mais pobre, essa concentração de repertório é que acaba sendo seu grande triunfo, porque é na repetição exaustiva que sua prosa acha um humor azedo e exuberante, talvez único na literatura da segunda metade do Século 20 (trecho de O náufrago):
“Vai para a Suíça, onde tudo é podre; a Suíça é o país mais sem caráter da Europa, disse: lá, sempre tive a impressão de estar num bordel, disse. Um puteiro só, seja no campo ou nas cidades, disse. Sankt Moritz, Saas Fee, Gstaad – todas casas de tolerância, e isso para não falar em Zurique, Basiléia, bordéis internacionais, disse ele várias vezes, bordéis internacionais.”
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