Michel Laub

Fim de semana

            Um ensaio – Natalia Carillo e Pau Luque sobre hipocondria moral na Serrote.

            Um livro –Veludo Rouco, Bruna Beber (Companhia das Letras, 100 págs.).

            Um podcast – Collor versus Collor, Évelin Argenta.

            Um documentário – Wham!, Chris Smith.

            Um filme de 2007 – Margot e o Casamento, Noah Baumbach.

Formas do inferno

(…)

Ao reler A Idade Viril, me pergunto se ainda há lugar para o individualismo radical de sua abordagem. A ortodoxia de 2023 não é apenas uma restrição autoritária: ela também serviu para dar sentido coletivo ao relato autobiográfico, fazendo a dimensão pessoal dialogar com lutas emancipatórias de raça, gênero, classe. Como sempre em literatura, depende de como se faz. Nos piores casos, o autor que acusa a si mesmo deu lugar ao advogado de defesa das próprias virtudes, pegando carona na causa simpática do momento. Nos melhores, houve uma abertura de perspectiva, em que o ponto de partida da escrita deixa de ser o marco psicanalítico sem contexto para ganhar força política.

Exemplo notável são os romances memorialísticos do também francês Édouard Louis, que acabam de ganhar duas edições pela Todavia. Tanto em Quem Matou meu Pai (2018, 72 págs.) quanto em Lutas e Metamorfoses de uma mulher (2021, 112 págs.), ambos com tradução de Marilia Scalzo, o autor faz uma operação inversa à de Leiris. Enquanto A Idade Viril não olha muito para a história de sua época – a Primeira Guerra é apenas um tempo de surprise-parties, e o nazismo não é nem citado –, Lewis submete ao entorno social qualquer especulação sobre a própria identidade.

Trecho de texto sobre as memórias de Michel Leiris e Édouard Louis, publicado no Valor Econômico, 11/8/23. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição – Retratistas do Morro, Sesc Pinheiros.

Um podcast – Lugar de Sonho, Nando Reis.

Um texto – Ian Bogost sobre o Twitter (aqui).

Um livro de Edward Louis – Quem Matou Meu Pai  (Todavia, 72 págs.).

Outro – Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher (Todavia, 112 págs.).

Na trilha de Dioniso

Não sei se a alegria é uma questão de escolha, mas é certo que pode ser uma questão política. Num Roda Viva de 1988, o diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa respondeu a perguntas sobre uma suposta inconfiabilidade sua ao lidar com orçamentos, sobre os trabalhos que (não) tinha feito nos anos anteriores. Então apelidado de “decano do ócio”, e ainda no início da longa luta para defender a existência do Teatro Oficina – algo que durou até sua morte, no início deste mês, e não parece ter data para terminar –, ele ouviu de um dos entrevistadores a advertência de que era preciso ser realista ao propor projetos sem retorno financeiro aparente.

“Nenhum empresário ou governo sério vai ter coragem de botar dinheiro na sua mão”, disse o jornalista e editor Luiz Fernando Emediato. Ele se referia aos custos para montar As Bacantes, de Eurípedes, e construir o que é o atual prédio do Oficina. Zé Celso respondeu: “Você está encarnando o antagonista mais forte [das Bacantes], o personagem do Penteu. Que coisa bonita, teatralmente (…). Aqui é o palco do mundo. Chegamos exatamente no ponto. Ou o Brasil vai para o teu caminho, a tua imediatice, ou para um outro lado. E o outro lado traz prosperidade, riqueza”.

Emediato trabalhava no SBT, de Silvio Santos, dono do terreno que Zé Celso queria transformar numa extensão do Oficina (mais tarde ele passou a defender um parque no local). O diretor não via interesses opostos no conflito, já que a cultura também gera receita e empregos. Nesse sentido, o plano era deslocar a dramaturgia televisiva brasileira do Rio para São Paulo, trocando o modelo da Globo por um mais aberto, que fundiria a inovação do melhor teatro paulistano com a tecnologia de uma emissora ligada ao imaginário popular.

Mas a discussão no Roda Viva era mais ampla que isso, e vista hoje soa como premonitória. Em 1988, num mundo que vivia os estertores da Guerra Fria, o que influenciava o início da redemocratização brasileira, o modelo liberal do “possível” estava prestes a se tornar hegemônico. Zé Celso viveu pregando o contrário: a liberdade de primeiro imaginar o ideal, para só depois adaptar a ele as contingências práticas. Parece simples, mas é a coisa mais difícil de fazer quando a vida está submetida a uma lógica de eficácia, onde os valores de troca e uso se impõem sob uma capa de fatalismo cultural.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 28/7/23. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um perfil – Larry Gagosian e o mercado da arte (aqui).

Uma entrevista – Roberto Andrés sobre 2013 (aqui).

Um livro de poemas – Expedição: Nebulosa, Marilia Garcia (Companhia das Letras, 112 págs.).

Uma exposição – Mulheres no CCSP.

Um filme – Oppenheimer, Christopher Nolan.

Fim de semana

Uma entrevista – Zé Celso no Roda Viva, 1988 (aqui).

Um texto – Thalia Vacha sobre Thomas Bernhard (aqui).

Um filme – Antena da Raça, Paloma Rocha e Luís Abramo.

Uma exposição – Antonio Obá, Pinacoteca.

Uma aula/show – João Gilberto por Arthur Nestrovski e Celso Sim.

Fim de semana

Uma exposição no MASP – Gauguin.

Outra – Sheroanawe Hakihiiwe.

Um filme – Siberia, Abel Ferrara.

Uma última entrevista – Zé Celso a Claudio Leal (aqui).

Uma HQ – Gênero Queer, Maia Kobabe (Tinta da China, 240 págs.).

Brilho na ratoeira

Logo no primeiro ensaio da coletânea The Moronic Inferno, de 1986 (Penguin, 208 págs), Martin Amis faz um longo comentário sobre nomes de personagens em romances de Saul Bellow. Para o autor, esse é um bom filtro para enxergar a graça, a profundidade e as ambições de determinada prosa – a visão de mundo que ela leva em si, sua capacidade de reagir ao “humor acidental” e à “poesia bizarra” da vida.

Eu diria que o trecho é um bom filtro para entender o próprio Amis, morto no mês passado aos 73 anos. As relações entre detalhe e conjunto, entre as pequenas escolhas de linguagem e os temas sociais, históricos e políticos em escala maior, pautou a carreira dessa figura grande e controversa das letras britânicas.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 16/6/2021. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição no IMS – Helena Almeida.

Outra – Iole de Freitas.

Um romance brasileiro – O crime do bom nazista, Samir Machado de Machado (Todavia, 128 págs.)

Outro – Vale o que tá escrito, Dan (DBA, 224 págs.).

Uma montagem no Oficina – Mutação de Apoteose, dir. Camila Mota.

Fim de semana

Uma série documental – History of Now, Simon Schama.

Um documentário – Natural History of Destruction, Sergei Losnitza.

Um filme meio safado – Air, Ben Affleck.

Uma conversa – Sofia Nestrovski e Rodrigo Lacerda sobre Shakespeare, 451 MHz.

Um disco – Voice Notes, Yazmin Lacey.

Otimismo nos destroços

Num texto célebre sobre uma pintura de Paul Klee, Walter Benjamin compara a história a um anjo que apenas olha para trás, registrando com impotência os destroços do progresso. A ideia possivelmente inspira um trecho de “Perestroika”, segunda parte da premiada peça Angels in America, de Tony Kushner, no qual um anjo tenta fazer o contrário: congelar ciência, costumes e fluxos migratórios porque isso tudo teria ido “longe demais”, gerando apenas “campos de matança sobre os corpos dos mortos” (Theatre Communications Group, 160 págs.).

Angels in America é de 1991, ano em que seu assunto de fundo – a epidemia de aids nos Estados Unidos – era o mais quente possível, com o número de mortes no auge assim como o estigma em torno das vítimas. Claro que a fala do anjo é irônica, uma utopia regressiva que exacerba o discurso puritano para denunciá-lo, mas a peça é mais complexa do que sugere essa passagem algo panfletária, em cima de um alvo fácil para leitores progressistas. O efeito político obtido por Kushner é, antes de tudo, um efeito de linguagem: ele nasce de uma alternância peculiar de tons, que vão do bíblico ao mundano, do lírico ao cômico de extração gay/judaica.

Nesse sentido, e embora haja todo um panorama de época nas falas de personagens representativos da Nova York dos 1980, o verdadeiro caráter documental do trabalho de Kushner é estético: a coragem, que se tornou tão rara nas décadas seguintes, de não deixar que a arte vire mero instrumento – que perca sua razão de ser ao se confundir com ação social, pregação partidária ou autoajuda, mesmo quando está do lado certo nas guerras da cultura contra a barbárie.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 2/6/23, sobre Angels in America, Ao Amigo Que Não Me Salvou a Vida (Hervé Guibert) e Meu Irmão, Eu Mesmo (João Silvério Trevisan). Íntegra aqui.

Luz possível

A primeira vez que estive Nova York foi em 1987, e uma lembrança nítida daquela viagem é o aspecto dos vagões no metrô. No período entre a recessão dos 1970 e a política higienista dos anos Giuliani, eles tinham as mesmas pichações que aparecem no filme que assombrou minha adolescência: Warriors (1979), de Walter Hill. Baseado num romance de Sol Yurick, com referências que vão do Kraftewerk a Laranja Mecânica, o enredo fala de uma gangue de Coney Island que atravessa Brooklyn e Manhattan para uma convenção de seus pares no Bronx. Um crime ocorre, os protagonistas são acusados injustamente, então é preciso fazer os 48 quilômetros de volta brigando com delinquentes vestidos de palhaços, dândis, jogadores de beisebol.

Warriors é um filme premonitório, ou influente em sua forma de adaptar à linguagem da época motivos clássicos da distopia urbana. A narrativa com estrutura de videogame, por exemplo, em que obstáculos/inimigos vão sendo vencidos um a um, com perda de vidas pelo caminho, é ligada a certo imaginário masculino – o público majoritário de jogos desde sempre – muito poderoso na cultura de hoje. O mesmo ocorre como o discurso de fundo da trama: um voluntarismo antissistema no qual gangues buscam um poder paralelo ao da polícia e da justiça, enquanto o Estado se degrada por omissão ou má fé.

Passo uns dias em Nova York para comemorar meus 50 anos. No tipo de reflexão que datas assim proporcionam, digo que há muito perdi a ilusão de que a grande história anda rumo às luzes, com as lições negativas do passado se comunicando com atos virtuosos do presente. Em certo sentido, os heróis de Warriors chegaram ao poder, mesmo que os vagões do metrô na Nova York de 2023 sejam limpos, com bandeiras do Estado norte-americano ao lado das portas de entrada. A rebeldia dos personagens do filme contra a autoridade institucional não era emancipatória, digamos, e hoje pode ser vista em todo tipo de fantasia miliciana/fascistóide. E o sentimento tribal que move o enredo, agora chamado de identitário, entrou para o mainstream eleitoral em sua versão mais bruta, virulenta e branca. 

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 20/5/2023. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição em NY – Gego, Guggenheim.

Outra – Wangechi Mutu, New Museum.

Uma Terceira – Jaune Quick-Jones, Whitney.

Um podcast – Daniel Libeskind no Clear + Vivid.

Outro – Guerra dos Seis Dias no História FM.

Fim de semana

Uma montagem em NY – The Sign in Sidney Brunstein’s Window, Anne Kaufman.

Outra – La Bohème.

Uma exposição em NY – Wura Natasha Ogunji, Galeria Fridman.

Outra – Xiyadie, Drawing Center.

Uma edição – Angels in America, Tony Kushner (Theatre Communications Group, 160 págs.).

Egopress

– No dia 17/5, às 13h, estarei numa live do Fala Brasil, evento sobre língua portuguesa promovido pelo Instituto Guimarães Rosa/Embaixada Brasil-Peru (transmissão pelo You Tube).

– Em 17/6, participo do evento Vociferarte, do Instituto Vox, em São Paulo (horário e local a confirmar).

– Tese de doutorado de Naiara Alberti Moreno, da Unesp, sobre o conceito de romance de formação aplicado pela crítica aos meus livros: https://cutt.ly/C5lJhea

– Dissertação de mestrado de Leila Aparecida Cardoso de Freitas Lima, da UFMS, sobre os “narradores protagonistas” em Diário da Queda e A Maçã Envenenada: https://cutt.ly/v5lGOw0

– Dissertação de mestrado de Saulo Scariot, também da UFMS, sobre “memórias literárias” no Diário da Queda: https://cutt.ly/N5lHkiY

– Dissertação de mestrado de Cláudia Aparecida Dans Dias, do Mackenzie, sobre autoficção em Diário da Queda: https://shorturl.at/qtNV3

– Texto de Luiz Lopes, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, sobre literatura, memória e esquecimento no Diário da Queda, publicado na revista Estudos Linguísticos e Literários, da Universidade Federal da Bahia: https://cutt.ly/O5lHBQE

– Sou um dos autores analisados no livro Uma literatura inquieta: memória, ficção, mercado, ética, de Lucia Helena e Paulo César S. de Oliveira (Editora Caetés).

– Resenha da revista The New Yorker sobre O ar que me falta, de Luiz Schwarcz, com um trecho falando de Diário da Queda: https://shorturl.at/MVWY7

– Depoimento meu numa campanha internacional de artistas em apoio às vítimas da guerra na Ucrânia, matéria da RTVE (Espanha): https://shorturl.at/gCFIS

Fim de semana

Uma exposição em SP – África, Museu da Imigração.

Outra – Hélio Oiticica, Casa SP-Arte.

Uma terceira – Evandro Teixeira, IMS.

Um documentário – Straight to You, Nanni Jacobson (aqui).

Um texto – Rebecca Fishbein sobre psicanálise, linguagem e egoísmo (aqui).  

Como derrotar o monstro

Em abril de 2013, quando fiz 40 anos, publiquei na Folha de S.Paulo uma lista de coisas que julgava ter aprendido com o tempo. Em meio às frases de efeito que eu gostava de usar na época, um dos itens do texto traz uma ideia que hoje soa como piada: a de que a tecnologia digital seria só um meio, e que em “90% dos casos” daria para “se adaptar a ela no que importa”.

Quem escreveria isso em 2023? Na última década fomos mergulhados no vale da morte das redes sociais, o que foi decisivo em eleições apertadas de países como os Estados Unidos e o Brasil. O otimismo possível diante desse cenário virou uma pergunta que por enquanto é só teórica: se o aparato das grandes plataformas digitais foi criado por humanos para moldar/ressaltar o comportamento de outros humanos, não estaria na humanidade a prerrogativa de controlar o monstro? Ou seja, de voltar a fazer com que ele seja um instrumento a favor da emancipação individual, da diversidade cultural e econômica, o que em escala maior favorece a democracia?

Os trechos mais sombrios de A Máquina do Caos, do jornalista americano Max Fisher (Todavia, 512 páginas, tradução de Érico Assis), mostram como isso seria difícil. Fundado num trabalho excepcional de apuração, que entrevistou ex-funcionários das Big Techs, hackers, ativistas e vítimas de horrores virtuais/reais, além de reconstituir os debates de ponta sobre o tema nas ciências exatas e humanas, o livro organiza informações, joga luz sobre episódios conhecidos e acaba montando um panorama vasto, a descrição de como os ideais dos anos 1960 – o DNA de quem fez o Vale do Silício – levou a um modelo de financiamento de alto risco, avesso a regulações internas e externas que ameacem os dogmas da liberdade antissistema.

Parece só uma escolha entre as possíveis no capitalismo, mas os efeitos culturais dela vão muito além. Alto risco gera necessidade de alto retorno, o que por sua vez cria a missão hoje adotada por todas as empresas do ramo: manter as pessoas o maior tempo possível online, maximizando os ganhos com anúncios e uso de dados. O que ocorreu nos últimos anos passa, antes de mais nada, por questões técnicas decorrentes dessa lógica quantitativa. A radicalização da misoginia nas redes, por exemplo, que também está na raiz dos fenômenos Trump e Bolsonaro, seguiu a percepção de que no mundo dos jogos eletrônicos a maioria a ser contemplada com sugestões de conteúdo atraente – aquele que desperta interesse com iscas identitárias – era composta por homens jovens com dificuldades na vida social.

Já o massacre étnico de Myanmar, que vitimou estimados 25 mil muçulmanos a partir de 2016, não teria ocorrido sem um projeto de expansão mercadológica. O Facebook entrara no país no início da década, tornando-se a principal fonte de informação onde não havia registro de ódio interno em tal escala. A plataforma não tinha interesse nas mortes em si, mas se recusou a fazer qualquer coisa a respeito delas porque isso diminuiria o lucro. “As empresas de cigarro levaram meio século (…) para admitir que seus produtos causavam câncer”, escreve Fisher sobre o precedente que então poderia ter sido aberto. “O Vale do Silício reconheceria de mão beijada que seus produtos podiam causar sublevações, incluindo até um genocídio?”

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 20/4/1973, sobre o livro de Max Fisher e o ensaio Formas Intermediárias, de Olavo Amaral. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um filme – Turn Every Page, Lizzie Gottlieb

Uma série que é melhor não ver – Voo 37: o Avião que Desapareceu.

Uma peça – Pagu, Martha Nowill.

Um texto na Piauí – Olavo Amaral sobre Inteligência Artificial.

Outro – João Batista Jr sobre chemsex.

Fim de semana

Um ensaio – Olga Tokarczuk sobre narradores sensíveis (em Escrever é Muito Perigoso, Todavia, 264 págs.).

Outro – Juliana Cunha sobre perigos da leitura (aqui).

Um terceiro – Stephen Marche sobre escritores e fracasso (aqui)

Um curso – José Miguel Wisnik sobre contos morais.

Um filme simpático – The Man who Saved the Game, Austin e Meredith Bragg.

Poesia em pó

Uma língua varia muito de país para país onde é falada. A região x de uma cidade não usa as gírias da região y. Taxistas não se expressam como advogados, adultos não entendem coisas que adolescentes dizem. No limite, lembra o escritor, tradutor e professor curitibano Caetano Galindo, referindo-se ao que a linguística chama de idioleto, “cada pessoa fala uma versão singular do idioma.”

A frase faz parte de Latim em Pó, ótimo livro de divulgação que resume a longa história do português que usamos no dia-a-dia (Companhia das Letas, 228 págs.). Galindo passa por Europa, África e Américas, dando conta das influências, adaptações e controvérsias em torno do idioma que nasceu do galego, que veio do latim da região do Lácio, que herdou resquícios do protoindo-europeu (origem também do grego e do sânscrito).

Há muitas passagens curiosas no texto. Por exemplo, sobre a trajetória cultural/política de certas palavras e marcos de prosódia. “Esquerdo”, que parece o basco “ezker”, surge de uma substituição que é comum em termos contaminados pelo tabu, desviando o caminho que entre nós daria no latino “sinistro”. Já o “rótico retroflexo”, ou erre caipira, é fruto da urbanização brasileira e seus intercâmbios com a cultura rural de migrantes, ou da força econômica de fenômenos recentes como o agro – uma expressão que dominou outras normas regionais até chegar à fala de rappers e filhos da classe média nas cidades.

É a ideia do idioleto, contudo, que pego emprestada nesta coluna cujo objeto é literário. Um dos paradoxos da língua, com todas as voltas milagrosas que nos faz vivermos mediados por ela em sociedade, é que num nível muito essencial a comunicação entre emissor e receptor nunca será completa. Algo ainda mais visível em gêneros onde o detalhe é decisivo, como a poesia: aqui tudo é submetido ao que Tom Zé chama de “unimultiplicidade”, condição em que “cada homem é sozinho/ a casa da humanidade”.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 25-2-23, sobre Caetano Galindo e o novo romance de JM Coetzee, O Polaco. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição no Rio – Miguel Rio Branco, IMS.

Uma em SP – Adriel Visoto, Verve.

Uma série de fotos – Tina Barney (aqui).

Um livro – A Máquina do Caos, Max Fisher (Todavia, 512 págs.).

Um podcast – Brasil para Maiores, Marie Declercq e Tiago Dias.

O grande tagarela

Já contei neste espaço que servi no CPOR de Porto Alegre. Foi em 1992, ano do impeachment de Collor, da conferência internacional do clima no Rio de Janeiro e da demarcação das terras Yanomami. No pelotão havia um jornalzinho, eu era um dos editores, e nessas páginas lidas trinta anos depois encontro excertos do pensamento militar médio da época: nós fazíamos entrevistas em que o personagem da edição dava respostas breves, seguras o bastante para não causar problemas com a cúpula do quartel.

Assim, dá para dizer que oficiais da ativa de então – no caso, tenentes e majores que entrevistamos – se sentiam à vontade para falar publicamente de democracia (“é muito boa se funcionar”), ecologia (“importante, mas estão espetacularizando demais”), Amazônia (“eu queria ter o padrinho que os índios têm”). Diante da pergunta “qual o maior problema do Brasil e qual a solução?”, um deles retomou o tema mais sensível nos discursos que passamos o ano ouvindo tristemente, entre faxinas, guardas e sessões de Ordem Unida: “Salário dos militares. Aumento”.

O preâmbulo pessoal não é por acaso. O CPOR é uma espécie de versão resumida das Agulhas Negras, a academia que forma o oficialato brasileiro. No debate sobre a presença fardada excessiva em governos recentes, é na própria mentalidade da caserna – sua autoimagem, seu papel político autoimposto – que está parte dos argumentos. Como lembra o ótimo Poder Camuflado, do jornalista Fabio Victor (Companhia das Letras, 446 págs.), as Forças Armadas se veem como tutoras da sociedade brasileira desde a fundação da República: às vezes na linha de frente, às vezes nos bastidores, nunca como o que a tradição francesa de tropas profissionais chama de “o grande mudo”.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 10/3/23. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um filme – All the Beauty and the bloodshed, Laura Poitras.

Um podcast – Rio Memórias.

Um livro de fotografia – Atlas, Gerhard Richter (dap, 862 págs.).

Um livro de contos – Filho de Jesus, Denis Johnson (Todavia, 112 págs.).

Um texto – Daniel Galera sobre Denis Johnson e reconciliação (aqui).

Fim de semana

Uma exposição – Marc Chagall, CCBB.

Um disco – This is Why, Paramore.

Um filme ruim – A Baleia, Darren Aronofsky.

Um artigo – O NYT, a aids e a transfobia (aqui).

Um livro – Poder Camuflado, Fabio Victor (Companhia das Letras, 446 págs.).

Como escrever sobre répteis

Em 2001, o jornalista inglês Jon Ronson publicou um livro curioso, Them, sobre a experiência de acompanhar líderes e grupos fanatizados mundo afora – de jihadistas a soldados da Ku Klux Klan, de protestantes que rejeitaram os acordos de paz na Irlanda a combatentes da suposta casta que controlaria guerra, peste e fome no mundo.

Digo curioso não só pelas histórias relatadas, mas pelos efeitos delas sobre o leitor da época. Sempre há um componente trágico no extremismo, tanto em relação a suas vítimas quanto ao caminho sem volta de quem o encarna, mas também pode haver comédia na obsessão, no exotismo detalhista com que são criadas algumas dessas teorias.

A fronteira entre os dois registros depende do contexto cultural. Não há nada de engraçado no supremacista branco que transpira ódio numa das entrevistas feitas por Ronson, mas é difícil não rir do ex-jornalista que acredita na abdução da humanidade por uma gangue alienígena de répteis. Dizendo-se a nova encarnação do filho de Deus, ele responde a quem desconfia de sua autoridade ao divulgar uma lista de ETs disfarçados na qual há nomes como George W. Bush, Bob Hope e a família real britânica: “Diziam o mesmo de Jesus Cristo: quem diabos é você, o filho de um carpinteiro?”.

Them é o retrato de um mundo anterior ao Onze de Setembro, às redes sociais, aos smart phones e seus desdobramentos conhecidos em eleições de anos recentes. Se isso permitia olhar para parte dos personagens do livro até com condescendência, já que os efeitos do pensamento deles eram no geral localizados (e nem sempre geravam violência), fazer piada em cima desse universo hoje é entrar numa zona ambígua. Numa época que se tornou estupidamente literal, a ironia pode ser uma forma de protesto – ou, como qualquer sutileza diante de fenômenos que pedem informação e indignação às claras, um modo de conivência com o horror.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 28/1/2023. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um livro – Latim em Pó, Caetano Galindo (Companhia das Letras, 232 págs.).

Um disco – Língua Brasileira, Tom Zé.

Uma entrevista meio velha-guarda – Salman Rushdie na NY Radio Hour.

Uma série meio histérica – The Bear.

Um filme – A Ilha de Bergman, Mia Hansen-Løve

O que incomoda em Machado

Numa entrevista de 2018, o poeta e professor Ítalo Moriconi comentou sobre o efeito das mudanças sociais das últimas décadas nas aulas do curso de letras da UFRJ. Lá há um número grande e bem-vindo de estudantes contemplados por bolsas e ações afirmativas, o que redefiniu a visão até então comum sobre certos clássicos da ficção brasileira.

O caso mais curioso é o de Machado de Assis. Uma parte considerável dos novos alunos é evangélica, e para ela a ironia laica do autor – com suas histórias bíblicas citadas de maneira enviesada, por exemplo – não é elogiada como valor. “Brás Cubas é muito cético para eles”, diz Moriconi. “Eles no fundo esperam da literatura algo edificante”.

É fácil considerar filistina esse tipo de visão, já que lições de moral e suas variantes não costumam ser associadas com qualidade literária, mas o fato é que a recepção de um romance, conto ou poema depende muito do vai-e-vem das guerras culturais. O próprio Machado, que por algumas décadas foi visto como escritor algo alienado, tão oficialesco quanto o seu busto de fundador da ABL, mudou de imagem nos anos 1960 graças a estudos como os da feminista Helen Caldwell e do marxista Roberto Schwarz.

Ambos partiram de questões formais, em especial a escolha da perspectiva em primeira pessoa, para mostrar que em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro havia um componente subversivo, entrelinhas que diziam o contrário do sugerido pelo valor de face de cada texto. No primeiro caso, a insensibilidade volúvel do narrador defunto, dândi e rentista também é uma crítica à elite em meio à qual ele viveu. No segundo, é a subjetividade radical de Bentinho que ilumina a dúvida sobre o comportamento de Capitu.

Se o critério for a percepção da ironia nesses romances, seu poder de gerar dúvidas narrativas e inquietações políticas, a leitura dos alunos da UFRJ é semelhante às de Caldwell e Schwarz. O que muda, claro, é o juízo de valor sobre o que a ironia acaba gerando. Guerras culturais servem também para isso: determinar quais ataques à sociedade são aceitos, quais utopias – as revolucionárias, as reacionárias – que devem se opor ao imobilismo cético.

Trecho de texto sobre Machado de Assis, Bianca Santana e Aline Motta, publicado no Valor Econômico, 10-1-23. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um livro – O Peso e a Graça, Simone Weil (Chão de Feira, 224 págs.).

Outro – El Polaco, J.M. Coetzee (El Hilo de Ariadna, 144 págs.).

Um texto – Ricardo Balthazar sobre Janio de Freitas na Piauí.

Um filme – Tár, Todd Field.

Um depoimento – João Barone para Bruna Paulin no História do Disco.

O jorro na varanda

Não lembro muito da primeira vez que li À Procura do Tempo Perdido. Eu tinha uns vinte anos, uma lista de clássicos que me obriguei a conhecer, e com esse impulso enfrentei dois dos sete volumes meio memorialísticos, meio ficcionais que tornaram Marcel Proust um autor inescapável do Século 20. Ficou pouca coisa do enredo e dos personagens, além de uma sensação comum na época: o reconhecimento do valor estético de um texto misturado ao orgulho de cumprir uma tarefa.

Voltei a Proust na virada do ano, aproveitando a nova edição de À Procura… pela Companhia das Letras, numa leitura menos inocente (e inocentemente programática) de Para o Lado de Swann, o primeiro livro da série (432 págs., tradução, introdução e notas de Mario Sergio Conti). Da primeira vez eu tinha mais pretensão que fôlego/repertório para entender as nuances de uma prosa densa, radical em sua ambição totalizante. Agora, a meia idade me faz ver de outro modo a relação entre a psicologia do narrador e um conceito subjetivo de tempo.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 13/1/2023. Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma exposição no MASP – Judith Lauand.

Outra – Madalena Santos Reinbolt.

Um podcast – Kafka no History of Literature.

Uma reportagem – James Daunt e a Barnes & Noble (aqui).

Um livro – A Água É Uma Máquina do Tempo, Aline Motta (Círculo de Poemas, 144 págs.).