Como escrever sobre répteis

por Michel Laub

Em 2001, o jornalista inglês Jon Ronson publicou um livro curioso, Them, sobre a experiência de acompanhar líderes e grupos fanatizados mundo afora – de jihadistas a soldados da Ku Klux Klan, de protestantes que rejeitaram os acordos de paz na Irlanda a combatentes da suposta casta que controlaria guerra, peste e fome no mundo.

Digo curioso não só pelas histórias relatadas, mas pelos efeitos delas sobre o leitor da época. Sempre há um componente trágico no extremismo, tanto em relação a suas vítimas quanto ao caminho sem volta de quem o encarna, mas também pode haver comédia na obsessão, no exotismo detalhista com que são criadas algumas dessas teorias.

A fronteira entre os dois registros depende do contexto cultural. Não há nada de engraçado no supremacista branco que transpira ódio numa das entrevistas feitas por Ronson, mas é difícil não rir do ex-jornalista que acredita na abdução da humanidade por uma gangue alienígena de répteis. Dizendo-se a nova encarnação do filho de Deus, ele responde a quem desconfia de sua autoridade ao divulgar uma lista de ETs disfarçados na qual há nomes como George W. Bush, Bob Hope e a família real britânica: “Diziam o mesmo de Jesus Cristo: quem diabos é você, o filho de um carpinteiro?”.

Them é o retrato de um mundo anterior ao Onze de Setembro, às redes sociais, aos smart phones e seus desdobramentos conhecidos em eleições de anos recentes. Se isso permitia olhar para parte dos personagens do livro até com condescendência, já que os efeitos do pensamento deles eram no geral localizados (e nem sempre geravam violência), fazer piada em cima desse universo hoje é entrar numa zona ambígua. Numa época que se tornou estupidamente literal, a ironia pode ser uma forma de protesto – ou, como qualquer sutileza diante de fenômenos que pedem informação e indignação às claras, um modo de conivência com o horror.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 28/1/2023. Íntegra aqui.

Publicidade