O que incomoda em Machado

por Michel Laub

Numa entrevista de 2018, o poeta e professor Ítalo Moriconi comentou sobre o efeito das mudanças sociais das últimas décadas nas aulas do curso de letras da UFRJ. Lá há um número grande e bem-vindo de estudantes contemplados por bolsas e ações afirmativas, o que redefiniu a visão até então comum sobre certos clássicos da ficção brasileira.

O caso mais curioso é o de Machado de Assis. Uma parte considerável dos novos alunos é evangélica, e para ela a ironia laica do autor – com suas histórias bíblicas citadas de maneira enviesada, por exemplo – não é elogiada como valor. “Brás Cubas é muito cético para eles”, diz Moriconi. “Eles no fundo esperam da literatura algo edificante”.

É fácil considerar filistina esse tipo de visão, já que lições de moral e suas variantes não costumam ser associadas com qualidade literária, mas o fato é que a recepção de um romance, conto ou poema depende muito do vai-e-vem das guerras culturais. O próprio Machado, que por algumas décadas foi visto como escritor algo alienado, tão oficialesco quanto o seu busto de fundador da ABL, mudou de imagem nos anos 1960 graças a estudos como os da feminista Helen Caldwell e do marxista Roberto Schwarz.

Ambos partiram de questões formais, em especial a escolha da perspectiva em primeira pessoa, para mostrar que em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro havia um componente subversivo, entrelinhas que diziam o contrário do sugerido pelo valor de face de cada texto. No primeiro caso, a insensibilidade volúvel do narrador defunto, dândi e rentista também é uma crítica à elite em meio à qual ele viveu. No segundo, é a subjetividade radical de Bentinho que ilumina a dúvida sobre o comportamento de Capitu.

Se o critério for a percepção da ironia nesses romances, seu poder de gerar dúvidas narrativas e inquietações políticas, a leitura dos alunos da UFRJ é semelhante às de Caldwell e Schwarz. O que muda, claro, é o juízo de valor sobre o que a ironia acaba gerando. Guerras culturais servem também para isso: determinar quais ataques à sociedade são aceitos, quais utopias – as revolucionárias, as reacionárias – que devem se opor ao imobilismo cético.

Trecho de texto sobre Machado de Assis, Bianca Santana e Aline Motta, publicado no Valor Econômico, 10-1-23. Íntegra aqui.

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