Poesia em pó

por Michel Laub

Uma língua varia muito de país para país onde é falada. A região x de uma cidade não usa as gírias da região y. Taxistas não se expressam como advogados, adultos não entendem coisas que adolescentes dizem. No limite, lembra o escritor, tradutor e professor curitibano Caetano Galindo, referindo-se ao que a linguística chama de idioleto, “cada pessoa fala uma versão singular do idioma.”

A frase faz parte de Latim em Pó, ótimo livro de divulgação que resume a longa história do português que usamos no dia-a-dia (Companhia das Letas, 228 págs.). Galindo passa por Europa, África e Américas, dando conta das influências, adaptações e controvérsias em torno do idioma que nasceu do galego, que veio do latim da região do Lácio, que herdou resquícios do protoindo-europeu (origem também do grego e do sânscrito).

Há muitas passagens curiosas no texto. Por exemplo, sobre a trajetória cultural/política de certas palavras e marcos de prosódia. “Esquerdo”, que parece o basco “ezker”, surge de uma substituição que é comum em termos contaminados pelo tabu, desviando o caminho que entre nós daria no latino “sinistro”. Já o “rótico retroflexo”, ou erre caipira, é fruto da urbanização brasileira e seus intercâmbios com a cultura rural de migrantes, ou da força econômica de fenômenos recentes como o agro – uma expressão que dominou outras normas regionais até chegar à fala de rappers e filhos da classe média nas cidades.

É a ideia do idioleto, contudo, que pego emprestada nesta coluna cujo objeto é literário. Um dos paradoxos da língua, com todas as voltas milagrosas que nos faz vivermos mediados por ela em sociedade, é que num nível muito essencial a comunicação entre emissor e receptor nunca será completa. Algo ainda mais visível em gêneros onde o detalhe é decisivo, como a poesia: aqui tudo é submetido ao que Tom Zé chama de “unimultiplicidade”, condição em que “cada homem é sozinho/ a casa da humanidade”.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 25-2-23, sobre Caetano Galindo e o novo romance de JM Coetzee, O Polaco. Íntegra aqui.

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