Poesia e cidades

por Michel Laub

Há muitos modos de um lugar estar presente num poema. Não conheço as gírias, a sintaxe e a prosódia da Baixada Fluminense, onde Bruna Beber nasceu e foi criada, então não sei em que medida as referências a esse português específico são diretas ou misturadas a outras referências em sua nova coletânea, Veludo Rouco (Companhia das Letras, 100 págs.). Mas é certo que aí está o ponto de partida, a matriz para nomear coisas que aconteceram ou poderiam ter acontecido: “Aos sábados batida de coco. Aos domingos/ chupar peixe com pratada de grão de bico”; “No meu sonho todas as casas tinham um pé/ de nêspera, de dia colhia-se manga-espada e/ cajá e crianças roubavam romãs da vizinha”.

Bruna mora há anos em São Paulo, e num dos melhores dos poemas do livro – o que lhe dá título – a linguagem dos tempos de formação passa a ser a do presente no bairro de Santa Cecília, onde somos quase vizinhos. Aqui ela serve para descrever a minha rua, que é longa e tem três nomes: primeiro Lopes de Oliveira, surgida aos pés “do muro que esconde os trilhos cânones/ da Cia. Paulista de Trens Metropolitanos”; depois, basta “uma rifa de batedeira marrom”, e “com um chapéu forrado em organdi” a rua passa a ser Rosa e Silva; mais adiante, por fim, fazendo referência ao edifício frontal no outro extremo, a Rosa e Silva vira Brasilio Machado e termina “nas torres duplas, esdrúxulas do Queen Victoria.”

Quem está mais presente nos versos, São Paulo ou a Baixada Fluminense? Ampliando a pergunta: como separar em Veludo Rouco a paisagem concreta e a maneira como a linguagem de Bruna a reinventa, alternando no desfecho do poema a perspectiva quem narra, num corte da terceira para a primeira pessoa que inclui – como no resto do livro – imagens às vezes misteriosas, sempre sugestivas? “de que mais precisa a Amendoeira Terminália/ para fundir-se de vez ao universo como metal/ e cavalgá-lo, soberba e parada, pelos astros?”; “podem vasculhar com calma as minhas malas/ e, garanto, não há sequer um nécessaire da Varig/ tampouco um dedal; quem deliberou a beleza nasceu/ no lixo assim como eu, ademais todas nós vamos morrer”. 

Trecho de texto sobre os livros Veludo Rouco (Bruna Beber), Quadras Paulistanas (Fabricio Corsalleti), Jardim Botânico (Nuno Ramos) e Jet Lag (Waly Salomão). Publicado no Valor Econômico, 8/9/23. Íntegra aqui.