Elegância deslocada

por Michel Laub

A primeira qualidade de um texto sobre artes visuais, e perdão por dizer o óbvio, é saber ver o seu objeto. Um pequeno livro do editor Flávio Moura, que gira em torno de uma escultura do artista mineiro Amilcar de Castro (1920-2002), começa a mostrar isso ao falar de um corte em diagonal que atravessa uma chapa de aço retangular. Unida pela parte de cima, a peça é dobrada e forma duas hastes “quase triangulares e longilíneas”, apoiadas no piso “de forma transversal” e tendo “um vão igualmente triangular entre elas”.

O nome do livro é o nome peça, Sem Título, de Amilcar de Castro (Edusp, coleção Prismas, 76 págs.). Embora se aprofunde em temas estéticos, reproduzindo debates que vêm da época do neoconcretismo brasileiro, Moura nunca perde de vista a solidez do vocabulário descritivo, vindo de disciplinas como a geometria e a engenharia. É dessa planície clara que enxergamos os picos às vezes abstratos do pensamento crítico: há um complemento entre as interpretações de nomes como Rodrigo Naves, Luiz Renato Martins e Ronaldo Brito, com suas imagens que explicam as relações entre plano e volume, peso e leveza, tempo e matéria na obra de Amilcar (“forma difícil”, “premissa tectônica”, “gravidade ética do movimento”), e a citação de guindastes, caçambas, maçaricos, pontos de solda.

Falar sobre Sem Título é, antes de tudo, discorrer sobre uma imposição física. A peça tem 16m de altura, 4m de largura, 5 cm de espessura e 27 toneladas. As dimensões de prédio são sustentadas por uma ligação frágil, que um dos engenheiros responsáveis por sua montagem definiu como análoga ao equilíbrio entre duas folhas de papel postas de pé, uma encostada na outra. Criada em 1999 para atender a uma encomenda da Universidade de Uberaba/MG, ela interessou Moura ao ser deslocada para uma mostra no MUBE/SP em 2021, numa operação complexa em termos logísticos, cujos aspectos técnicos e humanos criaram uma espécie de evento em si.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 17/2/2024. Íntegra aqui.