Réquiem político

por Michel Laub

Quando estreou O Irlandês, de Martin Scorsese, em 2019, houve muitos comentários sobre o rejuvenescimento meio caricato que os efeitos especiais deram a Joe Pesci e Robert De Niro, atores que voltavam a trabalhar com o cineasta quase 30 anos depois de Os Bons Companheiros e Cassino. Também se falou do desempenho não muito convincente de Al Pacino. Também da pertinência de uma história escrita, dirigida e estrelada por homens, num tempo em que o universo masculino tinha virado um sinal político obsoleto, quando não reacionário.

Tudo verdade, e tudo fatal para o resultado se estivéssemos diante de uma escola de samba, com a média das notas determinando a sorte de um desfile na Sapucaí. É assim que certa crítica de cinema atua: separando os filmes em itens e julgando-os segundo uma suposta objetividade técnica – que, na maioria das vezes, é apenas expressão beletrista de uma visão de mundo filisteia. Dela fazem parte um juízo literal de verossimilhança (na vida real é assim ou não é), uma atribuição narcisista de valor (me identifiquei com os personagens ou não), uma leitura política rasa (a partir de lacração em diálogos, por exemplo).

Uma obra narrativa é feita de partes, mas é mais que isso. Se o discurso estético conseguir ter força autônoma, as eventuais falhas podem ser incorporadas como estilo – compondo uma originalidade que paira acima da eventual competência técnica, às vezes a desmentindo. É o que acontece com O irlandês, um triunfo imenso da fase madura de Scorsese, que serve como réquiem para certo cinema grandioso, aqui subvertido pelo que a obra do diretor sempre fez: usar determinadas convenções (como a do filme de máfia) como base material para um discurso metafísico (de referência cristã) sobre a morte (de pessoas, dos mundos que elas criaram ou habitaram).

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 17/11/23, sobre Assassinos da Lua das Flores e a obra de Scorsese. Íntegra aqui.