Solução de dois Estados – trecho

Você trabalha com isso, sabe como funciona. Esses dias eu vi um programa de entrevistas, tinha um rapaz na cadeira de rodas porque tomou um tiro de um vizinho e eu pensei, e se ele ficasse o tempo todo em silêncio? Faz a primeira pergunta, ele não responde. Faz a segunda, a terceira, ia ser curioso porque uma fala sobre ódio também é uma fala sobre o objeto do ódio. Esse objeto causa uma reação ao ser olhado. Isso também faz parte, na verdade é o que melhor explica o processo todo, então eu imaginei como seria se a gente começasse assim. Pelo menos no início, nenhuma retórica. Nenhum truque, nenhuma palavra de enfeite.

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Já pensou? Começa com uma imagem do meu rosto, acho que você ainda pega o contorno das marcas. Não os hematomas como estavam, mas mesmo assim. O meu nariz ficou um pouco torto também, dá para ver ainda? Se não der, eu tenho uma cicatriz em cima do peito. Cinco centímetros, da axila até quase a altura do mamilo. Quer que eu baixe a blusa e mostre?

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Aqui. Todos os dias eu olho para isso. É a primeira coisa que eu faço quando acordo, antes de ir ao banheiro, eu paro na frente do espelho que tem ao lado da minha cama e olho. Como você está olhando. Como o seu público.

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Sabe por que falar de ódio pode ser só um enfeite? Porque no fim o que vale é o efeito concreto, físico. Meu corpo está assim por um motivo. O motivo surge porque meu corpo é assim. Não é só o rosto e a cicatriz, eu posso ficar de pé e virar de costas, depois de frente, mas você sabe o que é fazer isso depois do que aconteceu? O que já era fazer isso antes de acontecer? É por isso que eu pergunto, além da humilhação de estar desse jeito eu ainda preciso contar a história toda de novo? Fazer todo o esforço, estar num dia bom para ser convincente. Não omitir nenhum detalhe. Não errar o tom. Não dar mais chance a quem quer acabar comigo usando um lapso, uma contradição qualquer sem importância.

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Por exemplo, o cenário. Isso foi filmado da quinta ou sexta fila, mas são muitos lugares atrás, seiscentas pessoas se o auditório estiver lotado. Ou será que tinha lugares vagos, e talvez fossem quinhentas e oitenta pessoas, ou quinhentas e cinquenta? Esses números fazem diferença para a minha credibilidade? E se eu disser que importa é a visão contrária, a que eu tinha do palco? Não dava para ver toda a plateia, as luzes eram mais fracas no fundo, mas eu acho que dá para dizer sem erro que era muita gente.

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Dá para dizer um monte de coisas sobre aquele dia. Seis de fevereiro de dois mil e dezoito. A não ser que você ache que é questão de sorte e azar, um mero acaso esse homem vir falar comigo antes de eu subir ao palco, e seiscentas pessoas verem o que ele fez comigo em cima do palco, e não ter nenhum segurança nas primeiras filas, nem nas filas do meio, nas do fundo, nenhuma das seiscentas pessoas se deu ao trabalho de tentar encontrar um enquanto eu apanhava.

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Se você entrevistar cada uma das seiscentas pessoas, elas vão dizer que são menos culpadas que o homem. Talvez até que não têm culpa nenhuma, afinal elas só saíram de casa para assistir a uma série de debates. Um simpósio de gente bem-intencionada. Um encontro de cidadãos exemplares no Hotel Standard, a dois quarteirões da avenida Paulista, como é que elas vão imaginar que uma das palestrantes ia levar uma surra na frente delas?

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O homem que me bateu usou uma barra de ferro. A barra de ferro era preta. Quer mais algum detalhe? Esse foi o primeiro golpe, na altura do peito. A barra tinha uma ponta, como se fosse um prego na parte lateral, é essa a cicatriz que você viu. Como ninguém fez nada quando a surra começou, ele criou coragem para dar um segundo golpe no rosto. O golpe foi amortecido porque eu botei a mão na frente, se não fosse isso talvez eu estivesse morta, e mesmo assim teve força para entortar o meu nariz, esse que você viu também.

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Quando ele deu o segundo golpe eu caí. É uma coisa instintiva, eu me encolhi preparada para ele dar mais um golpe, depois largar a barra de ferro, foi aí que ele passou a usar as mãos e os pés, dar socos e chutes para que eu terminasse de apanhar como uma, que palavra eu posso usar, qual a comparação certa? Ou seja, num relato verossímil para quem me ouve contando. Para quem me vê enquanto eu estou contando. Para quem faz uma relação entre o que é contado e o corpo de quem conta. É mais correto eu dizer que apanhei como uma cadela, uma galinha ou uma vaca?

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Eu acho vaca a palavra certa. Porque é isso que uma mulher gorda sempre vai ser. Uma vaca é uma vaca é uma vaca, no Hotel Standard ou em qualquer lugar, em dois mil e dezoito ou em qualquer época, essa é a primeira coisa que vem à cabeça quando o assunto sou eu. A primeira palavra. As primeiras variações dessa palavra, vaca leiteira, vaca premiada, vaca mocha.

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Foi o que o homem que me bateu disse. Quer apanhar, Vaca Mocha? Não precisa ser linguista para saber o motivo, a polícia mesmo cansa de usar esse recurso. Você pode investigar um crime a partir de algo escrito ou falado, o computador identifica padrões de vocabulário, gramática, sintaxe, dá para traçar a biografia inteira de um criminoso assim.

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