O tribunal da quinta-feira – trecho

1.

Ter um corpo de quarenta e três anos não impede que se pense como alguém de quinze. Um amigo meu gosta de fazer piadas sobre merda. Ele manda um Whatsapp: interditei o vestiário. Preciso comer mais linhaça, ele diz. Linhaça é saúde, granola e frutas, o reino das polpas cheias de fibras que tornam consistente o produto das entranhas, um bolo de microorganismos vivos dos quais só nos lembramos ao sentar no vaso. É muito deselegante começar falando disso? Também lembramos do que somos feitos quando pensamos na morte.

2.

Desculpem, mas preciso falar de algo deselegante. Uma lista, talvez, dos germes, bactérias, fungos, vermes e protozoários que estiveram e estão neste corpo de quarenta e três anos. Não tenho lembrança do que é ter icterícia, das gripes da infância. Aos seis anos, sarampo (um cobertor de lã, a voz baixa da minha mãe falando com o pediatra ao telefone). Aos sete, operação de adenoides (desenhos de navios no consultório, uma farmácia em que o atendente tinha cara de peixe). Mais tarde, sinusite. Alergia a pólen. Uma catapora tardia aos trinta e um, coceira e prostração, uma semana esperando as bolhas ressecarem e a visita a um infectologista que fez um relato sobre os vírus mais contagiosos da natureza – o meu numa lista com dengue, rubéola, pólio e caxumba.

Doenças que nunca tive: coqueluche, malária. Associo bronquite ao mergulho na piscina gelada da Associação Atlética Oswaldo Cruz, São Paulo, 1988. Eu poderia seguir contando a história desta maneira, uma dermatite no couro cabeludo que aparece uma vez por ano, a labirintite que me faz ficar enjoado quando estou no banco de trás do carro. Tanto tempo depois eu penso nos Whatsapps sobre digestão e excreção. O nome do meu amigo é Walter, e demorou para eu saber detalhes da vida particular dele. Para ele resolver, num dia como qualquer outro, contar aquela piada velha: o problema de tomar café é que dá vontade de fumar, e aí dá vontade de beber, e aí dá vontade de cheirar, e quando cheiro eu sempre acabo dando o cu.

Eu troco mensagens há anos com Walter – emails, chat. Nós almoçamos a cada uma ou duas semanas, e a conversa é como uma extensão dos textos, a correspondência dos anos 2000 que não é igual a uma troca de cartas no Século XIX, não há formalismo nem gelo a quebrar porque estamos familiarizados ao humor um do outro, ao vocabulário e à gramática. Não é preciso perguntar e então, meu caro, o que tem feito, nem dizer há quanto tempo, meu caro, espero que esteja tudo bem com você e com os seus, porque naquele mesmo dia eu ouvi o apito do celular e lá estava o tom familiar de Walter por escrito, diretamente do banheiro de casa ou de um shopping, e se for melhor para a audiência eu posso me limitar a outros aspectos da biografia do meu amigo. Ele tem quarenta e três anos como eu. Ele é publicitário como eu. Posso falar da família dele, de onde ele nasceu e de como nos conhecemos, das pessoas que estiveram ao redor dele e ao meu redor nas últimas quatro décadas. Posso até falar de outros gostos dele, do prato que ele pedia nesses almoços, de como ele se posiciona sobre a situação política, econômica e moral do Brasil em 2016 se isso tiver alguma importância, mas no fundo o assunto não terá mudado.

3.

O assunto é o mesmo desde que uma farmácia de São Francisco, Califórnia, pendurou em sua vitrine fotos de torsos masculinos cheios de manchas roxas. Era 1981, e naquela vizinhança todo mundo praticava o que antigamente era chamado de inversão, pederastia, troca-troca, chuca. Todo tipo de refugiado ia para lá – garotos que escaparam do linchamento em cidades do Meio-Oeste, garotos expulsos de casa porque foram pegos mexendo no rímel da mãe, dentistas de meia idade que largaram mulher e filhos em busca dos resquícios do sonho libertário dos anos 60. Uma vez vi uma entrevista com um dos moradores locais, ele descrevia o que considerava a guerra de uma geração, o Vietnã de quem fez dezoito ou vinte quando a primeira daquelas fotos foi pendurada na farmácia, enquanto para Walter ainda demoraria dois anos: em 1983 ele estava em Bariri, a trezentos quilômetros de São Paulo, cidade com trinta mil habitantes nos arredores da qual o pai dele tinha uma fazenda, quando Hélio Costa apareceu no Fantástico percorrendo hospitais e conversando com médicos e pacientes dos Estados Unidos. A reportagem usava a sigla por extenso: a a-i-de-esse é a epidemia mais violenta do século. A ciência enfrenta um de seus maiores desafios. Quinze países notificaram casos. Há crianças infectadas. Setenta e cinco por cento dos atingidos morrerá em pouco tempo, os dias finais com episódios alternados ou simultâneos de tuberculose, encefalite, meningite, pneumonia, toxoplasmose, herpes zóster, citomegalovírus e sarcoma de Kaposi.

Uma lista de como o mundo seria se tivesse continuado como no dia anterior a isso tudo: duas ou três gerações vivas, quantos engenheiros, bancários, cientistas, contadores, quantos livros e filmes e discos e exposições, e teatro e concertos e circo e dança, quantas ideias e sonhos e dinheiro poupado e famílias que não foram destruídas. As imagens que a tevê mostrava, 1981: o atentado ao papa João Paulo II, o general Figueiredo montando a cavalo antes de uma ponte de safena em Cleveland, um gol de Zico e ninguém nas arquibancadas do Maracanã avisado sobre o que nem Hélio Costa sabia ainda. Um dia amanhecendo em Bariri, 1983: uma cidade como qualquer outra do interior. A quermesse e o coreto. O prefeito, o louco oficial, o travesti que tinha as bochechas deformadas por causa de injeções de silicone malfeitas. Uma vez os amigos de Walter beberam e foram procurar o travesti. A casa dele era conhecida. Ele abria a porta para quem aparecesse, oferecia um conhaque e sabia quem eram aqueles meninos, a família de cada um, quem era o filho do médico, do delegado e do industrial. O piso da sala era de cimento. Havia uma imagem da Irmã Dulce e um aparelho de som. Walter viu os amigos mexendo nos discos, botando uma música de Cindy Lauper, aplaudindo quando o travesti fez sua dança imitando a cantora, e então ele tirou a camisa, depois o sutiã, e quando ele baixou a calcinha os amigos o seguraram e bateram nele com um pedaço de madeira. Eles repetiram os golpes na altura do quadril e dos rins, e o travesti ganiu como um animal na chuva, e como teria sido se Walter não tivesse assistido àquela cena e às cenas dos dias seguintes, os amigos rindo e contando vantagem sobre quem tinha dado mais pauladas na bicha velha? Vocês viram como a bicha velha chorava? As lágrimas borrando a maquiagem? Walter se mudou para São Paulo também por causa disso, e as visitas a Bariri se tornaram raras, o pai se dando conta de que o filho não voltaria para ser fazendeiro nem traria uma noiva para ganhar bênção, e como teria sido se Walter não fizesse faculdade, esta é a capital dos imigrantes, doze milhões de habitantes e tantas oportunidades para quem tem braços e juventude, e a história dele não tivesse se tornado parecida com a minha?

4.

Para mim começa um pouco mais tarde. Meu nome é José Victor, nasci em São Paulo e aos quinze anos fazia natação na Associação Atlética Oswaldo Cruz. Era 1988, setembro ou outubro, lembro da cor opaca dos azulejos e das pegadas de barro depois da chuva. A água tinha gosto de gelo. Havia limo nas frestas da laje. Eu estava com dois amigos, e um deles contou que um puteiro perto da praça da República deixava entrar estudantes de qualquer idade. Aceitei o convite por impulso, mas fui para o vestiário pensando se ainda era possível inventar uma desculpa. Tomei banho, botei a roupa molhada dentro de um saco plástico, os cabelos em contato com o ar do início da noite, e entrei no ônibus sem saber o que diria. Tanta coisa que pode acontecer para quem é virgem aos quinze anos, uma indisposição, a minha mãe que havia pedido para eu estar em casa às oito, o dinheiro que eu poderia alegar que esqueci.

O puteiro ficava no quinto andar de um prédio sem elevador. Rock Hudson já havia morrido e corriam histórias sobre Lauro Corona e Freddie Mercury. Quem abriu a porta foi uma senhora com traços indiáticos, que me apresentou uma senhora de traços mongóis, que me levou para o quarto e disse pode deixar que estou acostumada. Ela tinha as unhas vermelhas e abriu a embalagem da camisinha com os dentes. Ela desenrolou a borda do látex e não segurou a ponta para o ar sair. Eu estava a dois terços, ficando mais flácido a cada segundo, e ela disse não precisa ser um bom menino, pode se servir à vontade, e eu me concentrei como podia até que fiquei pronto para subir em cima dela, a mão me guiando, uma sensibilidade que não era muito diferente da minha própria mão até que na terceira estocada senti um calor diferente, e ela disse pode ser malvado agora, isto, não precisa tomar cuidado, e eu pensei não posso olhar para esta cara de mongol me pedindo para ir bem fundo, até o fim meu menino mau faz o que quiser comigo, e eu pensei não posso terminar tão rápido preciso me concentrar em outra coisa, e só depois me dei conta de que a sensibilidade aumentada se devia ao rompimento do látex e ao contato direto da pele com a mucosa e os fluidos.

Lauro Corona morreu em 1989. Freddie Mercury morreu em 1991. Em pleno Vietnã Da Geração Seguinte, ficou difícil não pensar neste jogo estatístico – a porcentagem de material orgânico que pode passar por um furo na camisinha, as chances de alguém levantar da cama e ir até a pia lavar uma superfície do próprio corpo lacerada por um ato que pode ser esquecido em duas horas ou nunca mais. Mas naquela noite eu voltei para casa como os meus dois amigos: fiz o relato dos detalhes sobre a mulher mongol, o entusiasmo que era um pouco de alívio porque eu não esperava que fosse tão, assim, natural. Uma dúzia de estocadas, e a partir da terceira a borracha estoura e eu me torno outra pessoa, uma biografia contada em atos de bravura tão naturalmente masculinos que excluíam o medo e a dúvida, até que vieram os dias seguintes – quando apareceram os sintomas da bronquite que eu teria todo início de primavera, uma reação alérgica desencadeada pelo pólen e a poeira urbana e a temperatura da piscina da Associação Atlética Oswaldo Cruz, mas que em 1988 eram coincidências demais para serem interpretadas assim.

Eu também assistia ao Fantástico. Foram anos de matérias sobre milagres religiosos, fantasmas que apareciam à beira da estrada para avisar de acidentes, o sumiço do menino Carlinhos e o espião búlgaro do veneno no guarda-chuva. A casa da minha família ficava no Sumaré, em 1983 eu dormia com a luz do corredor acesa, havia um quintal escuro e cheio de árvores que gemiam enquanto Hélio Costa informava que a a-i-de-esse era mais contagiosa que a hepatite e mais implacável que a leucemia. No consultório do médico que tratou minha bronquite tantos anos depois, fiquei com medo de que ele fizesse as perguntas que aprendi naquela reportagem: você tem tido febres, suores noturnos, andou perdendo peso. Lembro do gosto de anis do Bactrin que tomei por dez dias, não gosto de anis até hoje por causa disso, lembro dos acessos de tosse e do peito chiando no escuro de um sonho ruim, o pulo e o momento em que você acende a luz para se olhar no espelho, o pavor de descobrir a verdade às três da manhã por um sinal na pele ou nas mucosas ou por gânglios inchados no pescoço e nas axilas.

5.

Episódios de dúvida nos anos que seguiram a bronquite: o dia em que voltei da praia e percebi que minha barriga estava coberta de manchas (era sol), o dia em que descobri pontos violáceos na parte lateral da cintura (eram estrias), o dia em que achei caroços ao apalpar as virilhas (era a cartilagem da região). A medicina corrigiu o tempo médio entre a contaminação e os sintomas da a-i-de-esse de dois para cinco anos, depois oito, dez e indefinidamente, a eternidade após a ida ao puteiro da praça da República e de cada outro, como se diz, contato íntimo que tive. Querem uma lista disso também? A primeira menina que beijei sem precisar pagar se chamava Mônica. Só eu abri a boca ao encostar meus lábios nos dela. No dia seguinte contei para meia dúzia de colegas de escola, ela ficou sabendo e nunca mais olhou na minha cara.

O nome da minha primeira namorada era Alice. Uma vez ficamos sozinhos na casa dela. No quarto havia uma colcha xadrez e uma gaveta com um frasco de lança-perfume no fundo, e eu tirei a roupa dela e de novo não consegui botar a camisinha. Eu de novo comecei a ficar nervoso, o efeito do lança-perfume passa rápido, e é automático quando você decide qual é a prioridade no momento. Você sente o calor do primeiro toque desprotegido. O calor se torna o que você é, não dá para pensar em outra coisa fora a sensação de estar ali. O que você sabe sobre riscos e prevenção cai num ponto cego que só volta a ser iluminado dias ou anos depois, e da hipótese da mulher mongol você passa para a hipótese Alice (com quem ela havia tido contatos íntimos, já que não era virgem?), a hipótese Adriana (dois meses juntos, eu aos dezenove, ela morando sozinha e um namorado anterior que tinha contatos íntimos sistemáticos com outras mulheres), a hipótese Giovana (que voltou para Ribeirão Preto e sobre quem ninguém mais teve notícia).

Não sei o número total da lista. Já li bastante sobre probabilidades de infecção – pesquisas com casais de sorologia divergente, pesquisas com quem toma remédio, com quem não toma, com quem usa espermicida, com quem é circuncidado, com quem tem lesões locais visíveis ou microscópicas, com quem já teve sífilis ou corrimento ou está com dor de garganta ou no auge da menstruação, mas qual o efeito de uma estatística populacional no caso concreto, você e uma pessoa que acaba de conhecer entrando no banheiro de um bar úmido e quente, você e sua biografia de sensualidade, quatro doses de uísque e um pouco de pó e esta mulher sorrindo com os dentes mais brancos que você já viu enquanto abre os botões da camisa, tem certeza de que trancou a porta, quero que você me coma toda, a calcinha dela e o seu orgulho de macho ao mostrar potência nos instantes em que fica tarde para lembrar que quem ama protege?

Depois de Giovana foram cinco namoradas mais sérias. Há casas e viagens nessas histórias. Uma noite num restaurante que não existe mais. Apelidos que nunca mais foram usados. Há roupas, fotografias, presentes, bilhetes, discussões que se resolveram na hora ou depois ou nunca. Com cada uma foram longos períodos de contatos íntimos reiterados, que se somam aos contatos íntimos anteriores de ambos com outras pessoas, números que se somam e que ao final mostram uma loteria na qual um adulto pós-1981 joga centenas ou milhares de vezes. A primeira dessas namoradas sérias se chamava Carolina. A segunda, Ana Paula. A terceira, Simone. O nome da quarta é Tereza, apelido Teca, também nascida em São Paulo, arquiteta filha de arquitetos, foi meu único casamento e nos separamos três meses atrás.

6.

Quem ama protege é um slogan dos anos 1990, talvez dos 2000. Demorou até que os publicitários do governo chegassem a essas três palavras respeitosas, quase doces. O primeiro anúncio que lembro sobre o tema parafraseava um poema de Drummond: João amava Maria, que amava José, que amava Pedro, que morreu pesando quarenta quilos no Hospital Emílio Ribas. Dá para evocar uma sequência assim quando penso no casamento com Teca. Ela teve namorados antes de mim. Também teve períodos em que foi convidada a entrar no banheiro de um bar quente e úmido. Também tinha um número a ser posto numa tabela de probabilidades, para a qual era indiferente se os encontros foram motivados por desejo, amizade, vingança, tristeza ou um tique fisiológico em busca do próprio fim.

É curioso lembrar de Teca na noite em que a conheci, vê-la já naquela ocasião como minha futura ex-mulher, pinçar as coisas que ficarão marcadas entre todo um universo de datas, fatos e nomes esquecidos no caminho. No apartamento da minha então futura ex-mulher havia uma estante, fiquei olhando para as lombadas, é um dos momentos em que ninguém pode fingir ser o que não é, a escolha dos livros que denota um hábito ou uma mentira, um gosto cultivado ou não, próprio ou dependente da opinião alheia, e que no futuro fará você ter saudades desse aspecto específico da pessoa ou se vingar enchendo a memória de condescendência, quando não de um tom vitorioso de crueldade. Não havia mais do que dez livros na casa de Carolina, minha primeira namorada séria. Ana Paula, a segunda: apenas volumes técnicos de marketing, um romance de Jorge Amado lido no colégio e discos muito ruins e um termostato. Simone, a terceira: uma horta de temperos, todo tipo de bijuteria étnica, todo tipo de apetrecho para fumar maconha, dias inteiros em que ela ficava chapada e não conseguia dizer uma única coisa que prestasse. Teca tem a mesma idade que eu, e os pais são sócios no escritório onde ela fez sua carreira arquitetônica demonstrando a sensibilidade daquela estante de livros, uma seleção com curadoria atenta, os clássicos da área dela e também de arte e fotografia, alguns desses títulos em francês, outros em inglês, alguma ficção, alguns volumes de quadrinhos, tudo convenientemente arrumado e convenientemente bagunçado para repararmos que a dona da casa usa e conhece o que está ali.

Os pais de Teca passam os fins de semana no litoral norte. Eles têm uma propriedade, quase uma chácara pelas dimensões, a dois quilômetros da estrada de São Sebastião em direção ao interior da Mata Atlântica. Nós íamos para lá uma ou duas vezes por mês, durante o ano todo, e era comum haver outros hóspedes porque eram seis quartos e dois andares e uma piscina que aproveitava a água de um riacho, e também sauna e churrasqueira, e uma TV de quarenta e oito polegadas para ver filmes no ar condicionado. É bom sentar na varanda no fim de uma tarde úmida e quente. É bom tomar suco de melancia, beterraba e gengibre. O sr. Teco pai e a sra. Teca mãe trazem a bandeja com os copos longos do suco que eles mesmos prepararam, na cozinha que eles mesmos utilizam pois o caseiro e a caseira estão cuidando de suas coisas, e a empregada é uma pessoa querida que dá uma ajuda ótima mas não está à disposição vinte e quatro horas como se os hóspedes fossem bebês de engenho do Século XVI. Na casa de praia do Sr. Teco pai e da sra. Teca mãe todos fazem a própria cama e recolhem a própria louça, e tudo é muito despojado porque a família e seus amigos estão conscientes de que nasceram privilegiados num país de profundas fraturas sociais, onde se deve promover a cidadania e encontrar maneiras menos predatórias de lidar com recursos naturais escassos, e o urbanismo, a educação, a cultura e a arte são veículos para legar um mundo melhor para os nossos filhos, e como eu poderia explicar para uma pessoa que fala assim e pensa assim e tem um modo assim de vida a graça de uma piada sobre merda, sangue e morte?

 

7.

Há tipos e tipos de humor, e Teca sempre esteve do lado inteligente e civilizado dessa divisão. Ela não riria de cenas de cambalhotas ou tortas na cara. Não riria de um escravo que foge dos campos de algodão e é pego tentando roubar uma melancia no Alabama, 1862. Não riria de um homem de barba e solidéu que fica longe do forno porque tem medo de ser confundido com uma pizza na Polônia, 1944. Teca ria apenas das tiradas sutis daqueles filmes a que assistíamos na casa da praia, produções em que o diretor gosta de exibir sua inteligência e civilização em referências culturais plantadas aqui e ali, no meio de um diálogo ou de um cenário, para que o público perceba a citação e se sinta culto por isso e elogie o filme para retribuir essa espécie de suborno – uma trilha de jazz, o nome de meia dúzia de poetas e artistas plásticos, uma personagem que usa piteira e olha pela janela de um pequeno café numa Paris ou Berlim em preto e branco.

Na noite em que botei duas malas no carro e fui embora de casa, depois que as diferenças entre as minhas piadas e as de Teca se tornaram inconciliáveis, assim como as diferenças entre nossa visão de mundo, nossos planos e a maneira como cada um lidou com a estabilidade inevitável de um casamento de quatro anos – naquela noite Teca assistiu a um desses filmes antigos e delicados. Eu passei por ela carregando a primeira mala, voltei para apanhar a segunda, então fui até o pátio para me despedir do cachorro, um animal sem passado nem temor pelo que aconteceria nos dez minutos seguintes, quando enchi a tigela dele de água e passei a mão na cabeça dele e tirei uma foto dele para ao menos ter uma recordação. Teca estava com os olhos fixos na TV, e os sons antigos e delicados emitidos pelo filme eram baixos a ponto de eu achar que minha então já ex-mulher havia mexido no volume só para ouvir meus passos pela última vez, e ela se manteve nessa posição enquanto por alguns segundos eu pensei se ainda valia a pena dizer qualquer coisa, algo como tchau ou então, estou indo, ou ir até o sofá e dar um beijo leve na bochecha de uma pessoa que eu achava que nunca mais iria ver.

Não houve briga nos últimos dias do casamento. Não houve agressão ou cenas de desespero. Não houve apelos de reconciliação ou conversas dolorosas em que um dos dois admite erros ou pede desculpas por algo específico e inequívoco. Ali estava Teca, mais uma pessoa que eu perderia como um dia perdi Carolina, Ana Paula e Simone. Nada fica desses nomes além de uma história que facilmente se transforma em indiferença, quando não em egocentrismo, como a ferida de guerra de alguém apaixonado pelo próprio passado, o charmoso homem de meia idade que teve relacionamentos profundos hoje disfarçados de melancolia, então não deixa de ser irônico que minha ex-mulher possa ter sido algo além disso – alguém com quem tenho outro tipo de marca em comum, das poucas que um ex-marido ou ex-namorado ou ex-contato íntimo eventual não consegue esquecer ou romantizar, apenas porque três meses depois de eu ir embora ela me ligou para conversar sobre as mensagens de Walter.

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