Diário da queda – trecho

(mais sobre o livro aqui)

1.

Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num daqueles navios apinhados, o gado para quem a história parece ter acabado aos vinte anos, ou trinta, ou quarenta, não importa, e resta apenas um tipo de lembrança que vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde você esteve.

2.

Nos cadernos do meu avô não há qualquer menção a essa viagem. Não sei onde ele embarcou, se ele arrumou algum documento antes de sair, se tinha dinheiro ou alguma indicação sobre o que encontraria no Brasil. Não sei quantos dias durou a travessia, se ventou ou não, se houve uma tempestade de madrugada e se para ele fazia diferença que o navio fosse a pique e ele terminasse de maneira tão irônica, num turbilhão escuro de gelo e sem chance de figurar em nenhuma lembrança além de uma estatística — um dado que resumiria sua biografia, engolindo qualquer referência ao lugar onde foi criado e à escola onde estudou e a todos esses detalhes acontecidos no intervalo entre o nascimento e a idade em que teve um número tatuado no braço.

3.

Eu também não gostaria de falar desse tema. Se há uma coisa que o mundo não precisa é ouvir minhas considerações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe, e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e filósofos e artistas que dedicaram suas vidas a acrescentar notas de pé de página a esse material, um esforço para renovar mais uma vez a opinião que o mundo tem sobre o assunto, a reação de qualquer pessoa à menção da palavra Auschwitz, então nem por um segundo me ocorreria repetir essas ideias se elas não fossem, em algum ponto, essenciais para que eu possa também falar do meu avô, e por consequência do meu pai, e por consequência de mim.

4.

Nos meses antes de completar treze anos eu estudei para fazer bar mitzvah. Duas vezes por semana eu ia à casa de um rabino. Éramos seis ou sete alunos, e cada um levava para casa uma fita com trechos da Torá gravados e cantados por ele. Na aula seguinte precisávamos saber tudo de cor, e até hoje sou capaz de entoar aquele mantra de quinze ou vinte minutos sem saber o significado de uma única palavra.

5.

O rabino vivia do salário da sinagoga e da contribuição das famílias. A mulher tinha morrido e ele não tinha filhos. Durante as aulas ele tomava chá com adoçante. Pouco depois do início pegava um dos alunos, em geral o que não havia estudado, e sentava ao lado dele, e falava com o rosto quase encostado no dele, e o fazia cantar de novo e de novo cada verso e sílaba, até que o aluno errasse pela segunda ou terceira vez e o rabino desse um soco na mesa e gritasse e ameaçasse que não faria o bar mitzvah de ninguém.

6.

O rabino tinha unhas grandes e cheiro de vinagre. Era o único que fazia essa preparação na cidade, e era comum que na hora de ir embora esperássemos na cozinha enquanto ele tinha uma conversa com nossos pais, na qual dizia que éramos desinteressados, e indisciplinados, e ignorantes e agressivos, e no final do discurso ele pedia um pouco mais de dinheiro. Nessa hora era comum também que um dos alunos, sabendo que o rabino era diabético, que já tinha parado no hospital por conta disso, que tinha havido complicações e uma das pernas chegou a correr o risco de ser amputada, esse aluno se oferecia para pegar mais chá e em vez de adoçante botava açúcar na xícara.

7.

Praticamente todos os meus colegas fizeram bar mitzvah. A cerimônia era aos sábados de manhã. O aniversariante usava talid e era chamado para rezar junto com os adultos. Depois havia um almoço ou janta, em geral num hotel de luxo, e uma das coisas que meus colegas gostavam era de passar graxa nas maçanetas dos quartos. Outra era fazer xixi nas caixas de toalhas dos banheiros. Outra ainda, embora isso só tenha acontecido uma vez, na hora do parabéns, e naquele ano era comum jogar o aniversariante treze vezes para o alto, um grupo o segurando nas quedas, como numa rede de bombeiros — nesse dia a rede abriu na décima terceira queda e o aniversariante caiu de costas no chão.

8.

A festa em que isso aconteceu não foi num hotel de luxo, e sim num salão de festas, um prédio que não tinha elevador nem porteiro porque o aniversariante era bolsista e filho de um cobrador de ônibus que já tinha sido visto vendendo algodão-doce no parque. O aniversariante não ficava em recuperação em nenhuma disciplina, nunca tinha ido a nenhuma festa, não havia participado de um quebra-quebra na biblioteca, nem estava entre os alunos que puseram um pedaço de carne crua na bolsa de uma professora, muito menos achou engraçado quando alguém deixou uma bomba atrás da privada, um saco de pólvora no qual era preso um cigarro que queimava até a explosão. Ao cair ele machucou uma vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico por mais alguns meses e fazer fisioterapia durante todo esse tempo, tudo depois de ter sido levado para o hospital e a festa ter se encerrado numa atmosfera geral de perplexidade, ao menos entre os adultos presentes, e um dos que deveriam ter segurado esse colega era eu.

9.

Uma escola judaica, pelo menos uma escola como a nossa, em que alguns alunos chegam de motorista, outros passam anos sendo ridicularizados, um deles com a merenda cuspida todos os dias, outro trancado numa casa de máquinas a cada recreio, e o colega que se machucou no aniversário já havia sofrido com isso, nos anos anteriores ele foi repetidamente enterrado na areia — uma escola judaica é mais ou menos como qualquer outra. A diferença é que você passa a infância ouvindo falar de antissemitismo: há professores que se dedicam exclusivamente a isso, uma explicação para as atrocidades cometidas pelos nazistas, que remetiam às atrocidades cometidas pelos poloneses, que eram ecos das atrocidades cometidas pelos russos, e nessa conta você poderia botar os árabes e os muçulmanos e os cristãos e quem mais precisasse, uma espiral de ódio fundada na inveja da inteligência, da força de vontade, da cultura e da riqueza que os judeus criaram apesar de todos esses obstáculos.

10.

Aos treze anos eu morava numa casa com piscina, e nas férias de julho fui para a Disneylândia, e andei de montanha-russa espacial, e vi os piratas do Caribe, e assisti à parada e aos fogos, e na sequência visitei o Epcot Center, e vi os golfinhos do Sea World, e os crocodilos no Cypress Gardens, e as corredeiras no Busch Gardens, e os espelhos de vampiro na Mystery Fun House.

11.

Aos treze anos eu tinha: um videogame, um videocassete, uma estante cheia de livros e discos, uma guitarra, um par de patins, um uniforme da Nasa, uma placa de proibido estacionar achada na rua, uma raquete de tênis que nunca usei, uma barraca, um skate, uma boia, um cubo mágico, um soco-inglês, um pequeno canivete.

12.

Aos treze anos eu nunca tinha tido uma namorada. Eu nunca tinha ficado doente de verdade. Eu nunca tinha visto alguém morrer ou sofrer um acidente grave. Na noite em que o aniversariante caiu de costas eu sonhei com o pai dele, com os tios e avós que estavam na festa, com o padrinho que talvez tenha ajudado a pagar as despesas, e na festa não havia mais que um bolo de chocolate e pipoca e coxinhas e pratos de papel.

13.

Eu sonhei muitas vezes com o momento da queda, um silêncio que durou um segundo, talvez dois, um salão com sessenta pessoas e ninguém deu um pio, e era como se todos esperassem um grito do meu colega, um grunhido que fosse, mas ele ficou no chão de olhos fechados até que alguém dissesse para que todos saíssem de perto porque talvez ele houvesse se machucado, uma cena que passou a me acompanhar até que ele voltasse à escola, e passasse a se arrastar pelos corredores, de colete ortopédico por baixo do uniforme no frio, no calor, no sol, na chuva.

14.

Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz, e por afetar quero dizer sentir intensamente, como algo palpável e presente, uma lembrança que não precisa ser evocada para aparecer, eu não hesitaria em dar a resposta.

15.

Meu avô morreu quando meu pai tinha catorze anos. A imagem que tenho dele é a de meia dúzia de fotografias, ele sempre com a mesma roupa, o mesmo terno escuro e o cabelo, a barba, e não tenho ideia de como era a voz dele, e os dentes eu não sei se eram brancos porque ele nunca apareceu sorrindo.

16.

A casa do meu avô eu não conheci, mas alguns dos móveis de lá, a poltrona, a mesa redonda, o armário de madeira e vidro, foram para o apartamento onde minha avó passou a viver depois. Era um apartamento mais condizente com uma viúva que saía pouco, no máximo uma vez por semana para tomar chá na casa de uma amiga, hábito que ela manteve até que essa amiga se mudou para um asilo, e passou mais cinco ou dez anos no asilo, e nesse período quebrou uma perna e depois a bacia e teve pelo menos três pneumonias e um infarto e um derrame antes de morrer.

17.

Uma vez fui com a minha avó a esse asilo. O lugar era quase fora da cidade. Os quartos tinham cheiro de eucalipto, e o prédio era cercado por uma área verde onde havia bancos e canteiros de flores, e dali víamos enfermeiras e parentes dos internos, um ou outro funcionário de uniforme, às vezes um senhor com uma cadeira de rodas motorizada e um tanque de oxigênio. Minha avó e a amiga falaram da novela, da violência nos jornais, das pessoas na rua que são cada vez mais grosseiras, dos dias de frio que são cada vez mais longos, e em nenhum momento da conversa, nem de qualquer conversa que tive com a minha avó até ela morrer mais ou menos como a amiga do asilo, com a diferença de que no caso dela não houve um infarto no caminho, o derrame que ela sofreu foi fulminante, o que poupou a todos de vê-la numa cama durante a eternidade em que a pessoa não fala e não se mexe — em nenhum momento de sua vida a minha avó fez menção ao meu avô.

18.

Quer dizer, às vezes ela dizia o óbvio, que meu avô falava pouco, que dormia com um pijama de manga comprida até no verão, que no início do casamento costumava fazer quinze minutos de ginástica ao acordar, e uma vez caiu da escada que usava para subir no sótão, e eu poderia continuar essa lista até chegar a vinte itens, ou trinta se isso não for suficiente, mas em nenhum momento daqueles anos ela contou o essencial sobre ele.

19.

Nos últimos anos de vida o meu avô passava o dia inteiro no escritório. Só depois da morte é que foi descoberto o que ele fazia ali, cadernos e mais cadernos preenchidos com letra miúda, e quando li o material é que finalmente entendi o que ele havia passado. Foi então que essa experiência passou a ser não apenas histórica, não apenas coletiva, não apenas referente a uma moral abstrata, no sentido de que Auschwitz virou uma espécie de marco em que você acredita com toda a força de sua educação, de suas leituras, de todos os debates que você já ouviu sobre o tema, das posições que defendeu com solenidade, das condenações que já fez com veemência sem por um segundo sentir nada daquilo como se fosse seu.

20.

Se eu tivesse que falar de algo meu, começaria com a história do colega que caiu na festa. De como ele reapareceu na escola meses depois. De como criei coragem para me aproximar dele, uma pergunta quando os dois estão no corredor esperando pela próxima aula, um comentário qualquer sobre a prova na semana seguinte ou o casaco do professor que estava sempre cheio de caspa, e da maneira como ele respondeu ao comentário, como se aquela fosse uma conversa qualquer e fosse possível para qualquer um de nós esquecer que ele estava de colete ortopédico, e a cada vez que ele levantava era como se todos prestassem atenção se estava caminhando de forma diferente, com um passo um pouco mais alto que o outro, um ritmo levemente irregular que acompanharia para sempre a ele e aos que estavam na festa.

21.

O nome do meu colega era João, e à medida que nos aproximamos descobri que: (a) o pai dele vendia algodão-doce no parque porque o salário de cobrador de ônibus não era suficiente; (b) o pai criou sozinho o filho porque a mãe morreu antes dos quarenta anos; (c) depois da morte da mãe, o pai nunca mais casou, nem teve filhos, nem uma namorada.

22.

Sobre João eu fiquei sabendo que: (a) ele nunca contou ao pai que era enterrado na areia todos os dias; (b) ele sempre disse que não chamava nenhum amigo para brincar porque preferia ficar estudando; (c) ele nunca creditou nenhum problema na escola ao fato de ser não judeu, gói.

23.

Minha escola tinha tradição de botar alunos nas melhores faculdades, e dali haviam saído industriais, engenheiros, advogados. O pai de João achava que valia o sacrifício de matricular o filho num lugar tão caro: havia um programa de bolsas, e ele acabou ganhando oitenta por cento de desconto na mensalidade. Mesmo assim tinha de se desdobrar para pagar a quantia restante e mais uniforme, material didático, transporte.

24.

O pai de João resolveu comemorar os treze anos do filho porque a família nunca tinha dado uma festa. Tirando os aniversários de criança, eles costumavam apenas receber os parentes em casa para uma cerveja, e normalmente João não convidava ninguém além de um primo e de um garoto do prédio quatro anos mais moço. Mas porque João estava numa escola judaica, e na escola judaica todos faziam Bar Mitzvah aos treze, e em todas as festas o aniversariante era jogado treze vezes para cima, uma espécie de rito de iniciação do aniversariante ao mundo adulto, quando ele se tornava o que a expressão em hebraico que dá nome à cerimônia define como filho do dever, por tudo isso o pai convenceu o filho a receber a classe inteira no salão do edifício onde morava um cunhado.

25.

Eu soube disso tudo meses depois, quando já frequentava o apartamento deles. O apartamento ficava num prédio ainda mais modesto que o do cunhado, um lugar com as paredes descascando, cheio de fios à mostra, e naquele dia eu cheguei à tardinha e João não estava em casa. João tinha ido pagar uma conta, ou ao correio, ou ao cartório, uma das coisas que ele também fazia para ajudar em casa, e o pai me recebeu e ofereceu um copo de suco. Sentamos na frente da tv. Estava passando o noticiário local. Ficamos ali algum tempo, sem dizer nada, como quase nunca havíamos dito, porque até aquele dia eu nunca tinha trocado mais que cinco palavras com ele, e quando o silêncio ficou ainda mais incômodo e a novela ainda mais arrastada, porque já era quase noite e o filho não voltava nunca, ele começou a me fazer perguntas — sobre a escola, sobre o meu pai, sobre o meu avô.

26.

O pai de João me ouviu com a tv ligada, e era como se nada daquilo interessasse a ele, porque ele se mantinha olhando para a frente e nos intervalos trocava de canal. Numa dessas mudanças ele comentou sobre um programa de auditório em que a plateia ia pedir dinheiro, gente banguela, cega, surda, cheia de feridas e queimaduras, e o pai de João disse que absurdo eles deixarem essa gente aparecer, que absurdo eles fazem com essa gente, que absurdo o governo que não olha isso, estou cansado de viver neste país de merda. Você não acha que é um país de merda? Que aqui só se faz merda? Que só tem gente de merda aqui? E foi então que ele levantou e desligou o aparelho e começou a falar dele e do filho e da vida até perguntar, com a mesma raiva, olhando nos meus olhos como se tivesse esperado por aquele momento desde sempre, se eu não tinha vergonha do que aconteceu no aniversário de João.

27.

Numa escola como a minha, os poucos alunos que não eram judeus tinham até privilégios. O de não assistir às aulas de hebraico, por exemplo. Ou as de cultura hebraica. Nas semanas que antecediam os feriados religiosos eles eram dispensados de aprender as canções típicas, e fazer as rezas, e dançar as coreografias e participar do Shabat, e visitar a sinagoga e o Lar dos Velhos, e enfeitar o berço de Moisés ao som do hino de Israel, isso sem falar nos acampamentos do chamado movimento juvenil.

28.

Nos acampamentos éramos divididos em grupos, cada um com um monitor mais velho, e parte do dia era ocupada por atividades normais num encontro assim, o almoço, o futebol, os abraços coletivos de união, as gincanas com talco e ovos. Nós levávamos barraca, repelente, marmita, cantil, e lembro de esconder tudo o que pudesse ser roubado na minha ausência, uma barra de chocolate no fundo de um saco de roupa suja, um carregador de pilha em meio às urtigas.

29.

À noite éramos separados em dois grupos, um exercício que se chamava ataque à bandeira, um camuflado na vegetação e o outro que se encarregava da defesa, e durante a madrugada num descampado formávamos pelotões que reproduziam as estratégias de uma patrulha, com bússola e coluna, lanço e escalada, uma simulação do que tínhamos ouvido em palestras onde os monitores falavam sobre a Guerra dos Seis Dias, a Guerra de Independência, a Guerra de Yom Kippur, a Guerra do Líbano.

30.

Havia outros não judeus na escola, mas nenhum como João. Uma vez um deles segurou um colega e o arrastou por quarenta metros e esticou seu braço direito e bateu com um portão de ferro várias vezes nos dedos, e quando o colega estava se contorcendo ele pegou o braço esquerdo e fez a mesma coisa. João era diferente: o colega o mandava ficar de pé, e ele ficava. O colega jogava o sanduíche de João longe, e ele ia buscar. O colega segurava João e o forçava a comer o sanduíche, mordida por mordida, e no rosto de João não se via nada — nenhuma dor, nenhum apelo, nenhuma expressão.

31.

Quando o pai de João perguntou se eu não tinha vergonha do que aconteceu na festa, eu poderia ter descrito essa cena. Eu poderia ter dito algo mais do que ele esperava, o relato de como pedi desculpas a João quando ele retornou à escola. Em vez de contar como foi saber que João acabaria ficando bom, andando normalmente e tendo a mesma vida de antes, e como ficar sabendo disso tornou a nossa conversa mais fácil, como se o pedido de desculpas apagasse na hora o que ele passou depois da queda, ele estatelado diante dos parentes, com falta de ar porque havia batido as costas, ele na ambulância e no pronto-socorro e no hospital sem receber uma visita dos colegas, e mais dois meses em casa sem receber nenhum de nós, e de volta à escola sem que nenhum de nós tivesse se aproximado dele até o dia em que criei coragem para tanto — em vez de tudo isso eu poderia ter contado como era ver João comendo o sanduíche diante do agressor, terminando o último pedaço e sendo novamente pego pelo agressor, atrás de uma árvore no canto do pátio, cercado por um pequeno grupo que cantava todos os dias a mesma música.

32.

A música começava assim, come areia, come areia. Era como um ritual, o incentivo enquanto João virava o rosto e tentava escapar dos golpes até não resistir e abrir a boca, o gosto quente e áspero, sola de tênis na cara, e só aí o agressor cansava e os gritos diminuíam e João era deixado até se levantar já sozinho, ainda vermelho e ajeitando a roupa e pegando de novo a mochila e subindo de novo as escadas como admissão pública do quanto ele era sujo, e fraco, e desprezível.

33.

Nada disso impediu que ele aparecesse com os convites para a festa. Nas cerimônias de bar mitzvah os convites eram impressos em gráfica, em papel-cartão, com um laço e tipologia dourada, o nome dos pais do aniversariante, um telefone para confirmar a presença, o endereço para entrega de presentes. Os de João eram caseiros, feitos com papel-ofício, dispostos num envelope de cartolina, escritos em caneta hidrocor. Ele os entregou em silêncio, de mesa em mesa, com duas semanas de antecedência, a sétima série inteira convidada.

34.

Eu acordei cedo naquele sábado. Eu me vesti, fui até a geladeira e passei a manhã no quarto. Eu gostava de ver televisão assim, a veneziana fechada, a cama ainda desfeita e as migalhas de pão sobre o lençol até que alguém batesse na porta porque já eram quinze para a uma, e o resto do dia foi: o almoço na casa da minha avó, a ida com a minha mãe ao shopping, ela perguntando se o colega que fazia aniversário preferia um shorts ou uma mochila, uma carteira ou uma camiseta, se ele gostava de música e ficaria feliz com um vale-disco, e eu respondi e esperei que ela pagasse e que a balconista da loja fizesse o pacote e ainda fôssemos ao fliperama onde joguei corrida e sinuca eletrônica.

35.

Eu dei parabéns a João quando cheguei à festa. Eu entreguei o presente a ele. É possível que eu tenha cumprimentado o pai dele, algum parente que estivesse próximo, e é possível até que eu tivesse aproveitado a festa como todos os outros convidados, que eu tivesse até me divertido sem nem por um instante demonstrar nervosismo, os cinco colegas escalados para formar a rede de bombeiros, aqueles que eu também cumprimentei ao chegar, com quem também conversei normalmente, nós todos vestidos e ensaiados e unidos na espera pela hora do bolo e pelo parabéns.

36.

Não sei se participei por causa desses outros colegas, e seria fácil a esta altura culpá-los por tudo, ou se em algum momento eu fui ativo na história: se nos dias anteriores tive alguma ideia, se fiz alguma sugestão, se de alguma forma fui indispensável para que tudo saísse exatamente como planejado, nós em coro no verso final, muitos anos de vida antes de nos aproximarmos dele, um em cada perna, um em cada braço, eu segurando o pescoço porque essa é a parte mais sensível do corpo.

37.

Não sei se fiz aquilo apenas porque me espelhava nos meus colegas, João sendo jogado para cima uma vez, duas vezes, eu segurando até que na décima terceira vez e com ele ainda subindo eu recolhi os braços e dei um passo para trás e vi João parado no ar e iniciando a queda, ou se foi o contrário: se no fundo, por essa ideia dos dias anteriores, algo que eu tivesse dito ou uma atitude que tivesse tomado, uma vez que fosse, diante de uma pessoa que fosse, independentemente das circunstâncias e das desculpas, se no fundo eles também estavam se espelhando em mim.

38.

Porque é claro que eu também usava aquelas palavras, as mesmas que levaram ao momento em que ele bateu o pescoço no chão, e foi pouco tempo até eu perceber os colegas saindo rápido, dez passos até o corredor e a portaria e a rua e de repente você está virando a esquina em disparada sem olhar para trás e nem pensar que era só ter esticado o braço, só ter amortecido o impacto e João teria levantado, e eu nunca mais veria nele o desdobramento do que tinha feito por tanto tempo até acabar ali, a escola, o recreio, as escadas e o pátio e o muro onde João sentava para fazer o lanche, o sanduíche jogado longe e João enterrado e eu me deixando levar com os outros, repetindo os versos, a cadência, todos juntos e ao mesmo tempo, a música que você canta porque é só o que pode e sabe fazer aos treze anos: come areia, come areia, come areia, gói filho de uma puta.

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