Machado de Assis e as cotas
por Michel Laub
Depoimento que colhi do escritor, curador e professor Ítalo Moriconi, da UERJ, às vésperas da eleição de 2018, sobre a experiência de dar aulas de literatura no período posterior à implantação da política de cotas nas universidades brasileiras. Publicado na versão online do Anuário Todavia 2018-2019 (Todavia, 160 págs.), que editei junto com André Conti.
Graduação – O curso de Letras da UERJ, onde dou aulas, é marcado pela política de cotas vigente há quinze anos e pela presença crescente de alunos ligados ao universo evangélico. As duas vertentes não necessariamente coincidem em cada indivíduo. Em paralelo, de 2008 até a crise financeira agravada em 2015, eu estimaria em 40% ou 50% a proporção dos alunos que ganharam algum tipo de bolsa ou auxílio para graduandos. Não sabemos se esse modelo vai perdurar depois do total colapso de 2016, quando bolsas deixaram de ser pagas, o bandejão foi fechado, etc. O fato concreto é que, pelo menos nas áreas de Ciências Sociais, Humanidades e Pedagogia, a UERJ é uma instituição muito social, foi a primeira pública do Rio a oferecer cursos noturnos e a maioria dos alunos de Letras não tem pais formados em curso superior. Nosso aluno de graduação é geralmente primeira geração a ter acesso ao ensino superior.
Pós-graduação – A pós-graduação em Letras, por sua vez, tanto mestrado quanto doutorado, tem um perfil diferente. O público é formado por alunos e alunas já relativamente bem preparados, oriundos de backgrounds diversos. O perfil é menos “social” e mais de uma ¨elite acadêmica¨, mesmo que o nível de renda familiar não seja tão alto e inexista a experiência da viagem internacional. De qualquer modo, sendo de origem menos ou mais abonada, o pós-graduando em Letras é um ralador ou raladora por natureza. Todos são ou serão professores. O sistema funciona movido principalmente por calendários e verbas federais.
Identidades – Ao voltar a dar aula, depois de oito anos na editora da universidade, observei mudanças muito grandes em relação a 2007-2008. A percepção das políticas identitárias (raça, gênero, identidade sexual) está presente na maioria dos alunos. As leituras meramente formalistas não funcionam mais. A mudança também foi estabelecida por toda uma geração de professores que aprenderam, entre outros, com Silviano Santiago. Ficou claro que, se existe anacronismo em nossa mediana literatura do Século 19, ele vem mais da ideologia que da fraqueza ou ingenuidade das tramas sentimentais (sempre muito bem aproveitadas, no século 20, pelo folhetim eletrônico). Os textos indianistas de Gonçalves Dias e de Alencar se conectam dramaticamente com as questões contemporâneas dos índios, do racismo, em primeiro plano, e da misoginia também. Isso impõe (ou somatiza) novas formas de texto e novas ênfases na crítica.
Léxico e lugar de fala – Meus esquemas de compreensão de textos de Alencar e Gonçalves Dias tiveram que ser estendidos, ampliados, para focar questões históricas e atuais de raça e gênero. Há uma estranheza grande dos alunos em relação ao léxico racista e misógino (ou patriarcal). Um Rubem Fonseca usando a palavra “crioulo” causa espécie nesses jovens negros engajados que se reúnem em coletivos e estão presentes nas salas de aula das ciências humanas, letras e educação da UERJ. Os alunos não estão necessariamente armados com conceitos como patriarcalismo, por exemplo: trata-se de uma leitura de conteúdo, e de como o texto afeta a questão subjetiva do leitor. O conceito de lugar de fala é crucial e veio para ficar.
Violência e marcas históricas – Acredito que esse movimento “politicamente correto” da crítica traz novas camadas de compreensão, que se agregam às anteriormente praticadas. Um exemplo é a leitura que fizemos do poema Marabá, de Gonçalves Dias. Eu sempre vi em Iracema, de José de Alencar, o caráter violento da colonização mostrado sem meias palavras – já que a pobre morre no final e a criança, o primeiro brasileiro, é levado sabe-se lá para onde numa jangada com o pai branco e um cão rafeiro. No caso de Marabá, o drama é o da mestiça. Gonçalves Dias inverte a situação e mostra o preconceito dos índios, que não a querem loura nem alva nem seus olhos verdes, que eles preferem bem pretos. É o drama da diferença – e, no entanto, a interpretação taxativa dos meus alunos é que o angustiante para os homens que rejeitam Marabá é o fato dela ser produto do estupro da índia pelo branco. A “diferença”, nesse sentido, não seria tanto uma questão de cor, e sim produto de marcas históricas.
Evangélicos – Quando comecei, em fins dos anos 80, o clima era laico porque quase não se falava em religião. Com uma rapidez incrível, porém, nos anos 90 o alunado da UERJ foi se tornando cada vez mais evangélico. Mas a história deles era de errância religiosa: a maioria falava de trajetórias familiares em que tinham saído do catolicismo tradicional e passado por mais de uma igreja alternativa (há sempre a presença forte e silenciosa do espiritismo.) Passados vinte anos, não só há evangélicos de mais renda: também a maioria dos alunos dessa religião nasceu e cresceu na igreja que ainda frequenta. Está mais claro na cabeça deles o conceito de uma cultura laica, que não segue a bíblia, e que eles parecem interessados em entender. Vejo também que existe entre esses jovens maior abertura para questionarem seus pais e seus pastores, mas tudo de uma forma light e respeitosa.
Machado – Ainda em relação aos evangélicos, fica interessante lecionar Machado de Assis, por exemplo, porque os alunos conhecem as histórias bíblicas citadas, de maneira lacunar e enviesada. A verdade, porém, é que esses textos não descem bem junto a esse público. Brás Cubas é muito cético para eles. Eles no fundo esperam da literatura algo edificante, embora o realismo de um O Cortiço (Aluísio Azevedo) lhes agrade.
Redes sociais – O mundo digital tem uma presença forte na tecnologia da didática, digamos assim. Você pode deixar os detalhes enciclopédicos (datas, títulos, definições mínimas) para serem pesquisados no ato da aula, cada aluno com seus telefones googlando. Dá uma nova dinâmica. Mas ainda não me acostumei a lidar com os alunos lendo o texto nos seus telefones. Tenho a impressão de que romances, por exemplo, ou mesmo contos, nunca são lidos na totalidade linear – é uma leitura por espasmos de páginas e parágrafos.
Papel do professor – A autoridade do professor, e a própria formação dele, não são mais suficientes para ditar sozinhas o conteúdo ou o enfoque em sala de aula. Mas uma aula com bom conteúdo erudito ainda é uma necessidade e é desejada, inclusive e até principalmente, pelos mais ativistas e engajados. A aula é encarada como algo que está trazendo repertório relevante dentro de um interesse específico. A meu ver, essa situação se deve principalmente às condições gerais de produção e circulação do saber – a relativização dos cânones, o ensino universitário mais como prática de pesquisa que transmissão de conteúdo. Pelo menos na Uerj, o consumo cultural dos jovens da graduação é muito baixo, basicamente televisão aberta. Teatro e cinema nem pensar, por serem caros. Por isso eles valorizam muito o que podem aprender ou apreender na universidade.