Cem escritores brasileiros e suas manias quando escrevem (8)

por Michel Laub

Adriana Lisboa, autora de Rakushisha – “Minha cabeça não funciona para escrever de noite. Também não sei escrever bebendo, fumando, nada disso – a imagem romântica do(a) escritor(a) notívago e drogado/embriagado não poderia ser mais distante de mim. A cabeça tem que estar completamente desanuviada e concentrada. De manhã ou de tarde, eu escrevo quando posso, e se consigo espremer umas duas horas do dia para dedicar à escrita, é uma maravilha.”

Heitor Ferraz, autor de Coisas imediatas – “Sempre tenho ótimas ideias quando ando. Mas como nunca levo caderneta, elas se perdem. Escrevi os meus melhores textos, quase todos em prosa. Mas ficaram esquecidos na calçada. Em casa, gosto de escrever no computador, depois que aposentei a máquina de escrever. Um cinzeiro, meu maço de Marlboro, e alguns livros para avançar, deliberadamente, no alheio. Durante um tempo, escrevia de madrugada. Agora, não tem mais hora – escrevo bem menos. E quando trabalhava em firma, gostava de escrever na firma, um olho no computador e no outro na porta, para mudar rapidamente de tela, caso o chefe desse uma incerta na sala.”

Marcelo Mirisola, autor de Memórias da sauna finlandesa – “Nenhuma superstição. Apenas trabalho. Sou como o motorista de ônibus que engata a primeira marcha, a segunda, e segue – aos trancos e barrancos – até o ponto final. Só isso.”

Wilson Bueno, autor de A copista de Kafka – “Sou mais um ‘reescritor’ do que um escritor propriamente dito, tamanha a obsessiva e exaustiva e neurótica reescritura que faço dos meus textos. Copio Clarice (Lispector),  e essas coisas são extremamente contagiosas: quando da máquina datilográfica, dava 7 espaços do começo da lauda até o início do texto a ser iniciado. Hoje faço o mesmo no computador. Isso é sagrado – toc, toc, toc na madeira mais próxima. 7 sagrados espaços 1/5 ( no word).

Só escrevo de madrugada, geralmente começo à 1 hora da manhã e vou até quando der. Prometo a mim mesmo, quando envolvido com algum projeto (ficcional), mesmo extenso, só escrever, no máximo, 2 páginas de 31 linhas, em rigorosas Garamond 14, com zoom em 94%, espaço 1/5 – isso aí também é outra obsessão.

Se for além das duas páginas, muito que bem, epifanias… Se não consigo ultrapassá-las chego a ficar 3, 4, 10 dias longe do projeto, angustiado, culpado e horrorosamente com medo de mim mesmo, um impotente, alguém que, embora com mais de 15 livros publicados, nunca escreveu uma linha…

Um belo dia retomo, e se chego às duas páginas (ou mais), de novo, sigo no ritmo diário, ou madrugueiro – de modo constante, até novo nó, claro…

Quando dou o texto por ‘concluído’ (as 2 laudas ou mais) aí é que começa a glória e o êxtase de escrever. Sem angústia, puro gozo, releio, na cama, se frio (e sempre faz frio em Curitiba) embrulhado em cobertores e lareira acesa, crepitando (tem que estar crepitando, hehehehehe), os papéis A-4 sobre uma velha prancheta de papelão que me acompanha seguramente há uns 20 anos.

Se um dia eu perder a prancheta, acho que não escrevo mais, tem que ser ela, somente ela, não mais que ela…. Aí leio como se fosse outra pessoa, um estranho face àquele texto e desce, então, a caneta Mont Blanc, esferográfica (tem que ser ela, só ela, apenas ela, exclusivamente ela, presente de um velho amigo e que está junto comigo aí uns 15 anos) sobre o texto, praticamente o desfigurando, de primeira.

Volto ao computador, corrijo o texto no word, imprimo como se fosse a versão definitiva. Volto à cama, ao quarto, à prancheta, à Mont Blanc, à lareira, ao estrangeiro que lerá aquele texto que não me pertence. Não precisa dizer que a caneta desce de novo impiedosa desfigurando o texto, só que um pouquinho menos…

Isso até começarem a passar os primeiros carros por minha rua de arrabalde, o dia clareando atrás das cortinas e então, só me dou o direito a um sono reparador, e sem culpa, se o texto que voltou da impressora (seguramente a trigésima nona versão…) prescindir da rigorosa (e implacável) Mont Blanc. Tem que ser um texto sem mácula, nem que depois, na releitura total do projeto, eu o desfigure de novo e aí recomeça a sanha… Não vou dormir, mesmo se ao digitar, bati um ponto vírgula onde deveria ser uma vírgula ou uma letra encavalou na outra… TEXTO SEM MÁCULA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Ô ofício, ô vida. Tem gente que chama isso de profissão. Também, a exemplo de Clarice, que conheci na juventude, chamo a isso de ‘missão’, ‘mediunidade’. Não escrevo, corro  atrás de mim mesmo.”

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